Tese Usp Beethoven Costa

Tese de doutorado Beethoven Hortencio Rodrigues da Costa
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA BEETHOVEN HORTENCIO RODRIGUES DA COSTA Recomendações aos alunos universitários que exercem a psicanálise: artifícios para se permanecer não-todo na universidade. (Versão corrigida) São Paulo 2013 BEETHOVEN HORTENCIO RODRIGUES DA COSTA Recomendações aos alunos universitários que exercem a psicanálise: artifícios para se permanecer não-todo na universidade. (Versão corrigida) Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano Orientadora: Prof.ª Kupfer São Paulo 2013 Maria Cristina Machado AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. Catalogação na publicação Biblioteca Dante Moreira Leite Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Costa, Beethoven Hortencio Rodrigues da. Recomendações aos alunos universitários que exercem a psicanálise: artifícios para se permanecer não-todo na universidade / Beethoven Hortencio Rodrigues da Costa; orientadora Maria Cristina Machado Kupfer. -- São Paulo, 2013. 138 f. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 1. Psicanálise 2. Universidade 3. Freud, Sigmund, 1856-1939 4. Lacan, Jacques, 1901-1981 5. Discursos I. Título. RC504 FOLHA DE APROVAÇÃO Nome: Costa, Beethoven Hortencio Rodrigues da Título: Recomendações aos alunos universitários que exercem a psicanálise: artifícios para se permanecer não-todo na universidade. Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Psicologia. Aprovado em: Banca Examinadora Profa. Dra. Maria Cristina Machado Kupfer Instituição: IPUSP Assinatura: Prof. Dr. Rinaldo Voltolini Instituição: FEUSP Assinatura: _______________________________ Profa. Dra. Michele Roman Faria Instituição: UNICAMP Assinatura: _____________________________ Profa. Dra. Marise Bartolozzi Bastos Instituição: Lugar de Vida Assinatura: __________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia de Araújo Andrade Instituição: IPUSP Assinatura: _________________________________ DEDICATÓRIA A Mari Vannucci, que me fez alcançar sem palavras o que é encore e aguentou todos os percalços de um aluno universitário interessado pela psicanálise. AGRADECIMENTOS A Cristina Kupfer, que me acolheu como aluno interessado em psicanálise, me incentivando a cada momento que sua leitura atenciosa era necessária. A Anna Carolina Lo Bianco e Rinaldo Voltolini, pelas contribuições valiosas na qualificação e participação na banca de defesa de doutorado. A Maria Lúcia de Araújo Andrade, por suas contribuições em uma proposta de uma leitura despretensiosa da psicanálise. A Michele Roman Faria, por ter aceitado participar desse processo na banca de defesa de doutorado. A Marise Bastos por ter me inspirado à leitura dos discursos lacanianos e por participar da banca a título de urgência. A Cynthia Medeiros, por sua orientação em meu mestrado, pela disciplina e carinho. A Suely Holanda, pela possibilidade de embarcar no bonde da psicanálise. Aos meus pais, Ana e Nazareno, que mesmo no meio de tanto sofrimento souberam como amar. Aos meus irmãos, Juan, Jam, Rafa e Rafaela, que sempre estão comigo mesmo que os desentendimentos apareçam e que tanto insurgências na vida tenham nos marcado. A todos os meus amigos, os que estão próximos e distantes, mas principalmente, àqueles que não estão mais entre nós. A CAPES pela concessão da bolsa que possibilitou este trabalho. RESUMO Costa, B. H. R. (2013). Recomendações aos alunos universitários que exercem a psicanálise: artifícios para se permanecer não-todo na universidade. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Esta tese nasce da inquietude sofrida pelo aluno no ensino da psicanálise na universidade que precisa enfrentar em sua formação a lógica curricular que impera na academia. O objetivo principal desta tese é atribuir e analisar o lugar do aluno no ensino da psicanálise na universidade, extraindo recomendações indispensáveis ao seu percurso. Para tanto, formulou-se um caminho metodológico não muito usual. Em primeiro plano, a experiência como aluno através de diário de campo das aulas do doutorado. Em seguida, fomentou-se uma discussão sobre o ensino da psicanálise na universidade, em um grupo de estudos com alunos da universidade. A análise do material se deteve sobre os pontos em que o discurso derrapa, pontos em que algo que era afirmado como o verdadeiro se destitui. O arremate final é a construção da ficção sobre Descartes para discutir o lugar do aluno nesse ensino. As discussões teóricas e sobre os grupos permitiram a indicação de que pelo discurso da histérica é possível habitar a universidade sem se paralisar ou entrar em uma busca incessante em relação ao saber. Mas habitar sempre esse mesmo discurso também é atroz, não permite o movimento que é necessário em relação ao não querer saber. Palavras-chave: Psicanálise. Universidade. Freud. Lacan. Discursos. ABSTRACT Costa, B. H. R. (2013). Recommendations for university students in the psychoanalysis: artifices to it remain not-all in the university. Doctoral Thesis, Institute of Psychology, University of São Paulo, São Paulo. This thesis was born from the uneasiness in psychoanalysis teaching suffered by the student that has to deal with the structure of the psychology course. The main objective of this thesis is to assign and to analyze the student’s place at psychoanalysis teaching in the university, giving essential recommendations to its route. Therefore, an unusual methodological approach was formulated. It started with the experience of writing a journal about the doctorate classes; then a discussion on the teaching of psychoanalysis in the university was put forward, in a study group with university students. The analysis of the material stood over the points where the speech fails, points at which something previously affirmed as true turned false. The finish line is the construction of fiction about Descartes to discuss the student's place in education. Theoretical and groups discussions allowed the indication that through the hysterical discourse it is possible to inhabit the university without being paralyzed or led into a never-ending quest for knowledge. But always inhabiting that same discourse is also atrocious; it does not allow the movement that is required with regard to the not wanting to know. Keywords: Psychoanalysis. University. Freud. Lacan. Discourses. SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................ 10 Capítulo 1. Sigmund Freud e sua relação com o saber: o anseio de produzir um saber inédito ................................................................................................. 26 Capítulo 2. Jacques Lacan como analisante do não querer saber ...................... 47 Capítulo 3. René Descartes edipiano: aluno ou analisante? ................................ 76 Capítulo 4. Formulações em cartel: lugar de fuga e deslize para o saber do aluno .............................................................................................................. 93 Considerações finais ............................................................................................ 128 Referências Bibliográficas ................................................................................... 134 INTRODUÇÃO Foi só no dia em que, num movimento de renúncia a esse saber, por assim dizer, mal adquirido, alguém pela primeira vez extraiu da relação estrita entre S1 e S2 a função do sujeito como tal, eu nomeei Descartes – Descartes tal como creio poder articulá-lo, não sem a anuência de pelo menos uma parte dos que se ocuparam dele –, foi nesse dia que a ciência nasceu. (Jacques Lacan, Seminário 17, 1992, p. 20). 10 Construir teoricamente uma resposta à questão da relação com o saber do aluno de psicanálise na universidade não é algo fácil, pois o próprio autor precisa não se deixar levar pela posição que ocupa. Tarefa de emergir e submergir a todo tempo para que sua própria relação com o saber universitário possa ser discutida de uma forma ponderada, com o intuito de que o discurso traga consequências sérias aos alunos interessados em psicanálise. O aluno que inicia sua graduação em psicologia, mesmo ouvindo falar da psicanálise e de Freud, inicialmente, não sabe que há diversas teorias sobre o psicológico. Não há consenso nem mesmo sobre o objeto da psicologia. Esse é o primeiro desafio que ele terá que dar conta. A aproximação com algumas teorias serão, a princípio, por intuição ou simpatia a alguma ideia proposta pelos autores, ou melhor, pela compreensão que ele possui desta. Há, além disso, a confrontação com um novo modo de pensar sobre o conhecimento, que adquire nova coloração, mais especificamente, a coloração universitária em seu modus operandi. Não é simples o encontro com a diferença de ideias. Muito menos, quando o aluno está acostumado com um ensino que apenas se preocupa em passar conhecimentos, sem que tais saberes façam algum sentido para a formação ou vida. Por exemplo, a matemática que em suma é a própria lógica, é passada como um aglomerado de fórmulas para ser usada em problemas específicos. Ao aluno não é permitido pensar logicamente, pois seus interesses não são levados em conta e o modo de como ele é julgado atrapalha qualquer movimento em direção a uma abstração do lugar mesmo ao qual ele está alojado. Permanecem repetindo fórmulas sem que essas sejam questionadas ou que questionem sua própria posição como pensante, seu lugar permanece petrificado em uma busca infindável, de pelo saber encontrar a verdade. 11 Quando a pluralidade de teorias que o ensino de psicologia promulga é apresentada a esse aluno, ele permanece aderido à antiga forma de pensar, e tende a homogeneizar as diferentes teorias. Outra possibilidade, é que iniciem uma banalização das diferenças e se prendam rapidamente à primeira verdade que lhes aparece. Não há um questionamento sobre o apego ou indiferença que tais teorias causam. Dentre as possibilidades as quais um aluno se insere na universidade ele poderá cursar uma disciplina em que seja apresentada essa dispersão objetometodológica de forma aprofundada ou rasa. No caso em que essa dispersão é apresentada de forma rasa não há o questionamento, e nem mesmo a problematização de tal dispersão. Apenas a mera apresentação da biografia dos autores sem situar suas diferenças teóricas radicalmente. E mesmo quando essa dispersão objeto-metodológica entra em jogo há ainda a possibilidade de ocorrer um mal entendido, ou seja, que não haja o reconhecimento de suas próprias premissas. Por outro lado, quando as raízes do pensamento psicológico e sobre o psicológico são situadas de forma crítica, e sua discussão toma uma via na qual o reconhecimento desse campo disperso não serve apenas para combates infindáveis e infundados, há a possibilidade do aluno melhor se situar em relação àquilo que sua formação proporcionará como “escolha”. Em outras palavras, ele se situará perante aquilo que determina seu pensamento sobre a subjetividade. Uma das respostas oferecidas pela universidade é a ideia de Figueiredo (1991) sobre as matrizes do pensamento psicológico. Ele analisa a diversidade teórica e metodológica que caracteriza o campo da psicologia desde seus primórdios, estabelecendo um aprofundamento epistemológico para encontrar os fundamentos dessas diversas vertentes explicativas dos fenômenos psicológicos. 12 Ele aproxima-se dos fundamentos históricos da psicologia com o objetivo de abordar a constituição da psicologia como ciência e profissão, analisando os contextos socioculturais, econômicos e políticos de seu surgimento, bem como as influências das outras ciências e filosofias que contribuíram para os diferentes projetos de psicologia. Todavia, explicitar as condições de surgimento de cada sistema teórico, apontando suas implicações com demandas sociais, bem como os pressupostos ontológicos e metodológicos aos quais se acham vinculados é um passo inicial, mas não é suficiente. Pode-se permanecer muito preocupado com relação à teorética e esquecer a prática clínica. Filiado a uma posição epistemológica, o aluno pode esquecer seu posicionamento ético. A introdução dos alunos nesse campo da história da psicologia como ciência independente, enfatizando as questões relativas à produção do conhecimento em suas implicações sociais, já é em si árida para os alunos de primeiro período do curso, recém-saídos do ensino médio e, em geral, ainda muito presos a uma postura passiva na relação com o conhecimento. O questionamento ético parece ser algo de outro mundo; confundindo o aluno mais do que esclarecendo. Seu lugar em relação à prática que surge perante seus olhos jaz como algo totalmente estranho ao seu pensamento. Uma proposta mais crítica pode parecer exceção à regra do mundo; exceção ao que sempre funcionou na vida escolar do aluno. Muitos se deixam abater pela dificuldade própria dos textos e se atém aos teóricos mais palatáveis; outros preferem serem desafiados pelos textos mais difíceis, mesmo sem entender nada, presos à repetição de citações infindáveis como verdades absolutas produzidas 13 pelos autores; há ainda, aqueles que conseguem captar as diferenças epistemológicas de tais teorias e buscam nos fundamentos a base para aquela que ele acredita ter escolhido. Obviamente, não se pretende dar conta de todas as posições possíveis que os alunos podem ocupar nesse primeiro tempo da formação de psicólogo, apenas algumas situações mais evidentes com o intuito de fomentar um panorama de tais posições. Tal cenário serve para estabelecer ao leitor o lugar da dificuldade inerente ao curso de psicologia: sua dispersão. Esse é o início da formação que preestabelece um lugar para quem possivelmente se interessará pela formação de analista. Passada a primeira dificuldade, o aluno deve escolher as disciplinas optativas que direcionarão sua formação. Na maioria das vezes, sem saber do que trata a dispersão do campo psicológico, e identificado ao professor que sustenta a teoria que o aluno acredita ter escolhido. É mais do que evidente a identificação de que os alunos padecem, apenas alguns ultrapassam esse estado. Àqueles que escolhem as disciplinas de psicanálise está destinada mais uma dispersão a ser confrontada. Não há apenas uma única teoria psicanalítica. Freud deixou um legado complexo, que produziu diversas cisões. Determinados psicanalistas se nomeiam freudianos, mas sustentam que o texto freudiano está ultrapassado; outros fundaram distintas teorias em oposição à Freud; alguns se interessam por diferentes campos de aplicação da teoria psicanalítica; e outros promoveram um retorno ao texto freudiano. Dentre essas distintas produções, o aluno carece de um questionamento ético-epistemológico das contribuições teórico-clínicas que cada posição defende. 14 É nesse ponto, por acreditar que um retorno à leitura de Freud permite a fundamentação da prática analítica em uma crítica assídua, que alguns se submetem ao ensino de Lacan como uma proposta de filiação. Por outro lado, determinados alunos, presos a primeira dificuldade própria da formação de psicólogo, podem apenas seguir os passos de um mestre Lacan e repetir suas citações como uma verdade absoluta. Submetidos à posição que o ensino de Lacan promulga, iniciam-se as dificuldades próprias ao discurso lacaniano. Em vários lugares, Lacan situa seu ensino como algo produzido a partir da posição de analisante. O enigma impera em seu estilo, com o desígnio de tentar que os alunos não se identifiquem as suas palavras ou ao seu ser. O que o faz sustentar sua preferência por um discurso sem palavras (Lacan, 2008). Em contrapartida, a aridez própria do estilo gongórico de Lacan faz com que muitos permaneçam aprisionados as suas palavras e o coloquem no lugar de mestre. Nessa tensão, que exige uma formulação constante, os alunos precisam se posicionar estruturalmente em relação aos ensinamentos lacanianos. Talvez, uma proposta seja a de uma leitura despretensiosa, pois mesmo as diversas citações nas quais ele esquece o autor e à que ele se submete como ensino possui uma visada de formar analistas. Quando Lacan (2008) cita Marx, por exemplo, deixa antever seu uso dos autores em qualquer citação. Era importunado há muito tempo pela ideia de citá-lo, mas admitia que pudesse sofrer mais malentendidos do que a própria função de enigma. Lacan sustenta, ao citar qualquer autor, o enigma para formação daqueles que o ouviam. Realça, assim, a função de homologia que o uso desse autor promulga. 15 Ele escolhe quaisquer teorias ou conhecimentos que promovam um auxílio à formação. Inclusive convida especialistas para que discorram sobre um assunto que ele considera importante, mas que reconhece sua inapetência. Por vezes, mesmo reconhecendo sua inépcia, Lacan se permite ser um pouco bobo e joga tal situação como enigma para que seus alunos se lancem ao desejo (de saber). Disciplina após disciplina, o aluno se confronta com fórmulas nunca vistas, esquemas de uma densidade absurda, autores desconhecidos, referências perdidas do texto que o próprio Lacan não sabe ou não quer declarar, conhecimentos complexos em linguística, sociologia, topologia, antifilosofia, lógica, etc. Há alguns percursos que o aluno pode adotar. Por exemplo, a busca desenfreada por saber a verdade do ensino lacaniano. Para tanto, se interessa ao nível epistemológico, procurando os problemas objeto-metodológicos que Lacan tenta desvendar, e se esquece da posição ética da formação analítica. A finalidade do ensino lacaniano não é outra senão formar analistas. Essa finalidade do ensino é perdida de vista. Para alguns é premente descobrir os furos do projeto lacaniano. É óbvio que os furos existem, como em qualquer outro campo de saber teórico – alguns já foram evidenciados nessa introdução –, mas a importância do seu ensino é promover um desejo, o desejo do analista, esse que ninguém sabe ou saberá qual é. Por acreditar que a inserção da psicanálise na civilização apenas funciona a título de sintoma, Lacan promove um modo freudiano de tratar tal sintoma. Sua posição é de considerar a psicanálise como um sintoma e afirmar que como tal ela pode desaparecer ou ao menos ser substituído pela religião (Lacan, 2005). Além de todas essas dificuldades, o aluno precisa dar contar da formação acadêmica. Essa que está diametralmente oposta à formação proposta por Lacan. Sofrer o ensino da psicanálise na universidade traz diversas problemáticas, pois 16 nesse contexto, o que é apregoado como formação analítica – teoria, análise e supervisão – padece da lógica curricular. Lacan (1992) elabora os discursos para constituir estruturalmente, em outras palavras, no real, o modo do futuro analista manejar a operação analítica. Nenhum discurso tem um valor de mau ou bom discurso em si, mas a paralização em determinado discurso pode levar ao pior. Alguém pode sustentar seu sintoma de certo modo discursivo e não sofrer por isso, saber lidar com isso devido às insurgências ou falta delas. Àqueles que não mais sabem lidar – que sua paralização discursiva objeta sua vida e o faz apostá-la em troca da possibilidade de pensar nas infindáveis vidas infinitamente mais felizes que sua própria –, há a psicanálise como um discurso que permite o movimento. O próprio discurso do analista é o trânsito de um discurso para o outro. Permanecer aprisionado no discurso do universitário produz um sujeito alienado da própria verdade, a de ser apenas um significante que representa um sujeito para outro significante. Tal significante mestre alijado de se representar por si só, necessita de outo significante para se constituir como um terceiro que é o sujeito. Pelo saber, pode-se cernir o que é o mais-de-gozar envolvido na operação de atravessar o real pelo simbólico. O que constitui um resto não assimilável dessa operação de tudo saber que é representado pelo próprio sujeito à deriva dos seus significantes mestres. Esse lugar pode servir para que uma vida seja vivida sem percalços, mas quando a paralização nesse discurso afeta o próprio parletre, sua vida passa a valer apenas como aquilo que se aposta pelas infindáveis que ele não viveu e não viverá. É nessa perspectiva, que quando o discurso do universitário, que não se confunde com a Universidade, prevalece e produz mal-estar que há a possibilidade do discurso do analista se insurgir. 17 Longe de haver recomendações para todos ou até mesmo recomendações a priori, o que essa tese propõe é um vislumbre de posições vivenciadas pelo próprio autor, que continua habitando a universidade como aluno, e se confrontando com essa problemática a cada dia. Uma saída insuspeitada para se permanecer não-todo na universidade é não se paralisar em uma única posição discursiva. Um savoir-faire que apenas se consegue em sua própria análise, mas não sem supervisão e estudo teórico. * * * A partir desse panorama exposto, a impossibilidade de se transmitir a psicanálise, de acordo com uma orientação lacaniana, inserido em uma lógica que ele denomina universitária torna-se a problemática central da tese. Em seu seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan (1992) defende que sua obra não se presta a uma tese universitária. Em outras palavras, como ratifica Pinto (2006, p. 35), “a psicanálise não aceita passivamente o regime do que (...) ocorre conforme a escritura previu”. Enquanto na transmissão da psicanálise a lei é a da contingência, a academia institui a ordem do necessário. De acordo com Lacan (1992), em sua lógica de ensino é suposta uma posição de analisante. Dessa forma, seria sensato considerar esse ato mais próximo ao discurso da histérica, exatamente o inverso do discurso do universitário (Castro, 18 2006a; Escars, 2006). Aqui, se constitui um problema: o que implica entrar na psicanálise pela porta da universidade? Em Prefácio a uma tese, Lacan (2003b) defende a ideia de que a incompatibilidade entre a psicanálise e a universidade se refere ao aluno. Ele sustenta que o psicanalista, por exemplo, foi obrigado a habitar a psiquiatria por causa da antipatia pelo discurso universitário. Apesar de reconhecer que a universidade abriga seu ensino, considera mais fácil demonstrar a incapacidade do discurso universitário. Exemplifica a inversão do discurso universitário ao situar que a tese que prefacia diz exatamente o contrário do que ele sustenta, que a linguagem é condição do inconsciente. Tal problema já foi objeto de estudos em artigos (Azevedo, 2001; Rosa, 2001; Rocha, 2005), livros (Lo Bianco, 2006) e teses (Sbano, 2003; Castro, 2006a). Porém, tais estudiosos versam sobre essa dificuldade a partir da posição de professor. Sabe-se, no entanto que o ato de ensinar a psicanálise não depende apenas do professor. A partir dessa brecha que os autores legam, o objetivo não é discorrer sobre o porquê dessa lacuna, mas poder contribuir a partir do que não foi dito sobre a delicada relação da psicanálise com a universidade: o lugar do aluno. Sobre essa relação, sabe-se que há um lugar para o ensino da psicanálise na instituição acadêmica. Há algum tempo existem diversos grupos de pesquisa, linhas de pesquisa e até programas de pós-graduação que têm na psicanálise um dos seus eixos, senão o seu principal. A questão que permanece é sobre o lugar de que se trata. Quais os fundamentos dessa prática alojada entre as paredes da universidade? Na maioria dos casos, a psicanálise está inserida nos departamentos de psicologia, mas podemos encontrá-la nos departamentos de psiquiatria, filosofia, artes, comunicação, educação etc. 19 Em uma busca no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (diretório do CNPq), com o descritor psicanálise, foram encontrados 234 grupos. O que demonstra que esse campo denominado psicanálise encontrou certa morada no nicho da universidade. Resta entender a lógica que funda e se reconfigura a cada dia na experiência do ensino da psicanálise na academia. Se, por um lado, a descrição lacaniana dessa questão não é muito otimista, seus comentadores o são. A passagem de Pinto (2006) referenda tal otimismo ao sustentar o quê da psicanálise importa à universidade: “é que a práxis psicanalítica ensine que a foraclusão do sujeito é o limite da ciência” (p. 36). Castro (2006a) acrescenta a essa problemática o recalcamento do sujeito no discurso universitário. Trabalhar com o sujeito, criado e expurgado ao mesmo tempo pela ciência moderna, é privilégio da psicanálise (Elia, 1999). O que pode mostrar uma saída para a inclusão do ensino da psicanálise pela via do sujeito? Nesse clima positivo, os autores concordam que há uma dificuldade inerente ao ensino da psicanálise na universidade, mas não fogem do embate. Evidentemente, concordam com Lacan, mas buscam saídas insuspeitadas ao impasse colocado pelo analista francês. É importante notar que em um momento posterior, Lacan (2003a), no texto Talvez em Vincennes – posição semelhante ao pensamento freudiano no texto Sobre o ensino da psicanálise nas universidades –, propõe que talvez, no Departamento de Psicanálise em Vincennes, os ensinamentos, em que o analista deveria se sustentar, fossem agrupados em um plano curricular (linguística, lógica, topologia e antifilosofia), não sem dificuldades precisas (Lacan, 2003a). De acordo com Lo Bianco (2006a), a mais séria dessas dificuldades é a “que diz respeito ao lugar de comando ocupado pelo saber no contexto universitário” (p. 7). Ao tentar tornar público o quê da psicanálise pode ser denominado de 20 conhecimento, produz-se um sujeito embaraçado e dividido pela impotência de conseguir ser um autor. Qual seria a incumbência do aluno nesse universo? Talvez não responder aos enigmas pela via do saber, em outras palavras, não ficar tão enamorado da verdade. Sobre essa problemática, Freud (1919[1918]/1999), em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, ao responder ao próprio questionamento sobre se deve ensinar a psicanálise nas universidades, formula um programa de inserção da psicanálise na universidade, mas não deixa de atenuar essa posição, ao afirmar que: Devemos considerar, por último, a objeção de que, seguindo essa orientação, o estudante de medicina jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita. Isso, de fato, é procedente, se temos em mente a verdadeira prática da psicanálise. Mas, para os objetivos que temos em vista, será suficiente que ele aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise. Afinal de contas, a formação universitária não equipa o estudante de medicina para ser um hábil cirurgião; e ninguém que escolha a cirurgia como profissão pode evitar uma formação adicional, sob a forma de vários anos de trabalho no departamento cirúrgico de um hospital (p. 189). Pode-se asseverar que a posição freudiana a respeito do ensino da psicanálise na universidade se assemelha às soluções dos comentadores de Lacan para a impossibilidade que tal ensino sugere. De certa forma, os analistas que se propõem a tratar do assunto sobre o ensino da psicanálise na universidade escolhem falar da posição do professor. Mesmo que considerem o lugar do aluno, suas consequências não são exploradas e 21 trabalhadas, pois a problemática que os interessa é a da posição deles como professores. Porém não é esse o interesse deste trabalho. O mote gira em torno da posição do aluno. Esse é o resto que recuperado dos textos dos analistas que tratam do tema em questão. Dessa forma, uma questão se institui: qual ensino da psicanálise é possível apreender pela ótica do aluno? Melhor dizendo: qual sujeito é formado após um percurso de ensino da psicanálise na universidade, produto de um ensino com uma lógica discursiva inversa à das “leis” de transmissão da psicanálise? Na dissertação de mestrado defendida pelo autor da tese, produziu-se uma torção do objeto de pesquisa: do questionamento acerca do posicionamento das professoras frente à questão diagnóstica, passou-se a questionar a própria posição. O que era antes uma análise da demanda pelo diagnóstico da criança feita pelas professoras, tornou-se uma apreciação da própria posição de acusação de quem a estudava. Nesse trabalho, diversos impasses deram a consistência dessa torção. Evidentemente, esses impasses geraram um mal-estar, mas a posteriori, pode-se ler como algo da estrutura da questão: pergunta que surgiu de uma prática de estágio, elemento curricular da universidade, em uma instituição escolar, com uma sustentação teórica fundada na psicanálise. A principal hipótese da dissertação era que ensinando às professoras, a partir das recomendações teóricas de alguns analistas que criticam o diagnóstico da criança, elas mudariam de posição em relação à demanda e não exigiriam mais o diagnóstico, nem muito menos prenderiam o sujeito nesse rótulo. 22 Implicações à parte, o ensino da psicanálise foi colocado em xeque ao final da escrita da dissertação, pois como era declarada, a tentativa de ensinar às professoras algo que se apreende da psicanálise, melhor dizendo, de autores psicanalistas, o que era uma marca indelével da primeira posição tomada frente às professoras, gerou o inverso do que se supunha ocorrer. As professoras não mudaram seu posicionamento em relação à criança diagnosticada; mais que isso, elas utilizavam as elaborações teóricas como meio de culpabilizar as mães ou as crianças pelo fracasso escolar. Na arguição, questionava-se a posição de considerar a teoria letra morta, por quase expurgar o saber teórico de uma prática, ou seja, fazer o inverso do que era a posição inicial. Nesta tese, propõe-se um retorno à experiência como aluno da graduação e pós-graduação sujeito ao ensino da psicanálise na universidade com o intuito de que ocorra uma passagem do saber pelo lugar da verdade, e não sua expurgação ou rechaço, parâmetros do discurso da ciência e do universitário. A tarefa desta tese é fazer do impasse – ser neófito no campo da psicanálise sujeito ao ensino dessa disciplina na universidade – a questão de trabalho. A maioria dos autores discorre desde uma posição de educadores: são professores discorrendo sobre sua relação com o ensino da psicanálise na universidade. O que esta tese pretende é a literalização, estando na posição de aluno, de uma experiência peculiar de relação com o saber psicanalítico dentro da instituição acadêmica. Literalização em dois sentidos específicos: o de transformar a problemática do aluno em escrita e a letra que pode ser extraída daí, o resto não assimilável que possui uma função de margem para o sentido de litoral, deriva que permite outras elaborações. 23 Em outras palavras, toda a escrita da tese é uma proposta de exercício para que os leitores possam extrair a posição de aluno a qual o próprio autor da tese sustenta. Esta tese depõe sobre o lugar da formação para quem ousa enfrentar um percurso pela psicanálise dentro da universidade. Quais são as exigências que o autor precisou responder? E consequentemente, o que pode ser reconhecido como recomendação aos alunos universitários que sustentam o lugar da psicanálise na universidade? Em vista da problemática explicitada, o objetivo principal desta tese é atribuir e analisar o lugar do aluno no ensino da psicanálise na universidade, extraindo recomendações indispensáveis ao percurso do aluno universitário que elege a práxis analítica. Trata-se aqui do estudo da experiência como aluno de graduação e pósgraduação em psicologia, na qual o ensino da psicanálise é exercido, no modo como essa experiência produz ou não formações diferentes da formação analítica. A principal hipótese é que a saída para o lugar do aluno no ensino da psicanálise na universidade é a de descoberta, assunção de algo que já estava escolhido. Ao ensinar, o psicanalista põe algo de si e cada aluno se engancha nessa transmissão conforme sua verdade (semi-dizer). Não são todos que se interessam pela psicanálise. O que ocorre é que a maioria tem verdadeira aversão por tal teoria. O ponto em comum que conseguimos recuperar é uma assunção: bastou ler um trecho de Lacan... Claro que isso não basta! O que entendemos por assunção é que algo da psicanálise que é transmitido se liga/engancha com algo daquele que é chamado aluno. Há uma descoberta, não só nos primeiros momentos, mas em pontos avançados em que o que foi transmitido hoje, ressignifica o que se entendia anteriormente: é como um cair de fichas... 24 De acordo com Houaiss (2001), assunção é a subida do corpo de Maria ao céu, onde de novo se reuniu à sua alma; a festa católica que celebra esse acontecimento; a obra que o representa; ascensão à posição hierárquica ou honorífica superior; ato ou efeito de assumir; proposição que, uma vez formulada e aceita, dá origem a uma série de influências irrefutáveis e necessárias; a primeira premissa de um silogismo; e a ação de formular ou escolher uma proposição que funcione como premissa de um raciocínio. Portanto, a partir desse significante podese pensar que assunção ao se configurar como levantamento e ao mesmo tempo assumir algo, permite que uma mudança de razão se efetive, ou seja, ela é o próprio giro discursivo, momento em que o sujeito está em um estado ultrapassado pela palavra e tudo que fazia sentido jaz como objeto. Dentro da perspectiva que um giro discursivo ocorra é preciso reparar que não é sem dificuldades que ele ocorre dentro da universidade. A aversão de um discurso pelo outro, no qual o modus operandi da universidade é a explicitação de conceitos, abrangência do saber, sua universalização, enquanto que o universo psicanalítico é o infinito particular, é o principal enfrentamento. Ponto que favorece a hipótese de heterogeneidade entre os discursos analítico e universitário. Porém, quem se insere em uma instituição acadêmica tem que de certa forma dar conta disso. Essa tese, portanto, é uma proposta de fomentação de uma crítica assídua pelos leitores, recém-chegados a universidade e interessados em psicanálise que tendem a uma cristalização discursiva, a partir da posição do seu autor. 25 CAPÍTULO 1 Sigmund Freud e sua relação com saber: o anseio de produzir um saber inédito. A maior riqueza do homem é a sua incompletude. (Manoel de Barros, Retrato do artista quando coisa). 26 A relação com o saber não é algo tão fácil de identificar; mais especificamente, trata-se de uma relação inconsciente, na qual a sutileza predomina. A operação de risco que é engendrada nesse capítulo configura-se como uma tentativa, uma aposta: que ao ler os textos de Freud pode-se extrair algo de sua relação com o saber. Desse modo, como a pesquisa possui uma temática específica que abrange o campo da universidade, a escolha dos textos segue o percurso de Freud em relação ao saber universitário, que se concebe centrado na sua relação com Jean-Martin Charcot. Relação dentro da universidade que marcou todo o trajeto freudiano, mas que não se confunde com o discurso do universitário. A hipótese central do capítulo é que a partir da fascinação por Charcot, e principalmente a partir do que ele deixava como domínio a ser explorado, Freud foi capaz de se opor ao grande médico francês, e consequentemente, produzir algo novo: a psicanálise. Pode-se dividir esse caminho em três momentos: fascinação, oposição e constituição de um enigma. Tal divisão não segue uma ordem estrita, mas tais elementos se alternam em relação ao que Freud pôde sublinhar da sua experiência com Charcot. Além disso, podem-se verificar algumas heranças que Charcot lega ao homem Freud apesar dele mesmo. Em outras palavras, Charcot transmitiu algo que ele efetivamente não sabia. Contudo, para permanecer em sua busca por algo novo Freud necessitou de outras sustentações além do seu mestre. Dentro dessa perspectiva, é preciso considerar sua relação com Fliess como ponto nodal para Freud deixar viva em sua alma sua posição de suspeita. A primeira apreciação dessas duas relações que Freud empreendeu consiste em concebê-las como homólogas. O oposto disso é a concepção alternativa de que 27 sua relação com Charcot seria de aluno e mestre e sua relação com Fliess de analisante e analista. Desse modo, a tentativa é situar a relação de saber específica entre Freud e Charcot para dar conta da questão de pesquisa. A relação entre Freud e Charcot é o exemplo de um modo possível de vínculo entre aluno e professor dentro da universidade que não segue a lógica universitária, o discurso do universitário. Charcot representa o pensamento de uma época, mas a forma romanceada de que Freud se utiliza em um relatório universitário demonstra mais a posição singular em que Freud se coloca em relação ao seu professor do que a universalidade de um pensamento. * * * No primeiro texto da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud há um relatório produzido por Freud (1956[1886]/1996), em resposta ao auxílio de uma bolsa concedida pelo Fundo do Jubileu Universitário da Faculdade de Medicina de Viena durante outubro de 1885 e fim de março de 1886, sobre seus estudos em Paris e Berlim. Surpreende-se que nesse primeiro texto, considerado pré-psicanalítico por James Strachey (1996a), Freud antecipe uma posição em relação ao seu saber: ele queria aprender algo totalmente novo. Essa ânsia, juntamente com sua posição de se destacar em relação à ciência, acompanhará Freud por toda a sua vida. A escolha desse texto para a abertura da Standard e a nomeação de prépsicanalítico é responsabilidade de Strachey (1996a); porém pode-se inferir que o texto exigia essa abertura. Ele declara os antecedentes de Freud, sua relação com o 28 saber psiquiátrico e neurológico da época, sua aspiração como pesquisador, “o desvio dos interesses científicos de Freud da neurologia para a psicologia” (Strachey, 1996a, p. 37) e, principalmente, sua fascinação por Charcot. O que Freud conseguiu depreender disso foi a histeria como campo de estudo e o método da hipnose. Algo muito diverso dos seguidores de Charcot, que ainda hoje o consideram um mestre para a neurologia com suas contribuições à compreensão dos distúrbios do movimento, como a Doença de Parkinson e a Síndrome de Tourrete (Teive, 1998; Teive, Munhoz e Barbosa, 2007; Teive, Chien, Munhoz e Barbosa, 2008). Por outro lado, se o encontro com Charcot despertou algo em Freud, foi alguma coisa que as ideias dele já perseguiam. Ele foi fisgado por pontos obscuros do discurso de Charcot: aquilo que era totalmente novo, mas para o que Charcot não dava a devida importância. Charcot, por exemplo, não utilizava a hipnose para o tratamento da histeria, apenas para suas grandes demonstrações públicas de apresentação de doentes. A postura de Charcot impressionou Freud de tal maneira que seus planos de estudos em Paris se restringiram ao hospital no qual Charcot lecionava: Hôpital de la Salpêtrière, que “era, naturalmente, o próprio Charcot, que, com a riqueza de sua experiência, a transparente clareza de suas exposições e a plasticidade de suas descrições, era facilmente reconhecível em todas as publicações da escola” (Freud, 1893/1996, p. 25). Além disso, seu primeiro filho varão recebeu o prenome de JeanMartin, que nasceu em 1889, três anos após sua passagem por Paris (Mannoni, 1994). Não há dúvida a respeito da circunscrição de Charcot sobre o pensamento de Freud. Mas como isso se estruturava? Qual era a relação com o saber que motivava 29 essa afinidade? Apesar de ser um professor universitário, o saber de Charcot não seguia uma lógica universitária, pois de alguma forma ele deixava buracos, nos quais a busca freudiana por algo novo podia se alojar. Ele estava inserido não-todo na universidade; mais do que isso, ele escorregava de um discurso ao outro. É possível perceber, a partir do que Freud sublinha do discurso de Charcot, que o mestre francês mudava sua posição ao ensinar deixando sempre lacunas. De acordo com Freud (1893/1996), Charcot, por dar apenas uma aula por semana, podia prepará-la cuidadosamente: “nessa exposição formal, em que tudo estava preparado e todas as coisas tinham seu lugar, Charcot indubitavelmente seguia uma tradição profundamente enraizada” (p. 27). Nesse instante, sua lógica era de um mestre preocupado com o funcionamento da maquinaria psiquiatra, preocupado com o ensino de uma forma didática aos seus alunos. Em contrapartida, quando Charcot sentia a “necessidade de apresentar a sua audiência um quadro menos esmerado de suas atividades” (p. 27) sua posição mudava em relação ao ensino. Sua preocupação era com a singularidade de cada caso. Sua clínica cumpria tal propósito; mais especificamente, nas Leçons du mardi, nas quais Charcot, em aulas improvisadas, “expunha-se a todas as casualidades de um exame, a todos os erros de uma primeira investigação” (p. 27). Tais aulas improvisadas fazem Freud (1893/1996) afirmar que a distância entre aluno e professor estava estreitada, pois nesses momentos Charcot fornecia “o mais detalhado relato de seus processos de pensamento e [mostrava] a máxima franqueza sobre suas dúvidas e hesitações” (p. 27). Ao estreitar a distância entre ele e seus alunos e excluir do seu campo de saber as questões da terapêutica, do sexual, entre outras questões, Charcot deixava para Freud como herança um domínio não deflorado. Tal qual um analisante de sua posição, ele se submetia a um 30 processo do qual se deixava ser um pouco bobo e dizia tudo que vinha a sua cabeça sobre sua clínica, o que, efetivamente, produzia um saber. Posição de discurso histérica que deixa um domínio em reserva, o enigma de sua verdade que não pode ser dito em palavras. Essa posição charcotiana provoca uma empolgação em Freud que perpassa a textura do relatório. O texto de Freud (1956[1886]/1996) não segue um aspecto formal que seria exigido de um relatório acadêmico. A intenção de Freud ao se dirigir ao Hôpital de la Salpêtrière, em Paris, era de ali continuar seus estudos de neuropatologia. Os fatores que contribuíram para essa escolha: primeiro, o grande acervo de material clínico, diversamente dos hospitais de Viena, nos quais o acervo era disperso; segundo, o renome de J.-M. Charcot; por último, acreditava que nada de essencialmente novo poderia esperar aprender, depois de haver usufruído do ensino de Theodor Meynert e Herman Nothnagel em Viena, mas queria formar seus julgamentos próprios por meio de sua experiência. A postura de suspeita parece acompanhar Freud desde o início. Cabe, aqui, esclarecer que essa posição de suspeita não segue a lógica da suspeição de que haveria algo por trás, algum significado oculto das profundezas. A suspeita seria a mesma de que defende Edgar Alan Poe (2005) em seu conto sobre a carta roubada. Aquilo que está mais do que evidente, mas que por esse motivo mesmo, ninguém vê. Todos os policiais procuram a carta pensando que ela está escondida, mas apenas Dupin tem a intuição de que alguém que é poeta e matemático não seguiria a lógica do mundo. Tal qual Dupin, Freud está submetido às cartas mais evidentes que os sintomas histéricos denunciam, na superfície mesma do dizer está à mensagem que o sintoma envia ao seu destinatário. 31 Freud, por sustentar tal posição, “ensina” uma posição frente às teorias e, principalmente, frente aos preconceitos “teóricos” impostos por nossas crenças. Ele tenta, por exemplo, tornar claro o fundamento em que baseia suas ideias, outra herança charcotiana. A qual pode ser descrita no ponto em que nas aulas improvisadas, Charcot pensa em voz alta e permite que os alunos participem da trajetória de seu pensamento: Observamos que ele comparou o caso que tem diante de si com um acervo de quadros clínicos derivados de sua experiência e arquivados na sua memória, e identificou os sinais visíveis do presente caso com um desses quadros. De fato, também é assim que todos nós, à beira do leito de um enfermo, chegamos a um diagnóstico, embora o ensino oficial da clínica, muitas vezes, dê ao estudante uma ideia diferente. A isto se seguem os comentários acerca do diagnóstico diferencial, e o conferencista se empenha em tornar claros os fundamentos em que se baseou sua identificação: fundamentos que, conforme sabemos, muitos médicos com habilidade para fazer diagnósticos não sabem explicitar, embora seu juízo seja determinado por eles” (Freud, 1892-94/1996, p. 176). De acordo com Freud (1956[1886]/1996), havia um costume entre os médecins des hôpitaux1 franceses de mudarem frequentemente de hospital e trocarem o ramo da medicina que estavam estudando, porém Charcot, “quando era interne no Salpêtrière, em 1856, percebeu ser necessário fazer das doenças nervosas crônicas o tema de um estudo constante e exclusivo; resolveu retornar ao Salpêtrière como médecin des hôpitaux e, depois, jamais abandonar esse hospital” (p. 41). Freud ainda sublinha que Charcot declarava que “seu único mérito consiste 1 De acordo com Strachey (1996a) médecin des hôpitaux “corresponde aproximadamente a um médico veterano em sua atividade e interne significa médico recém-formado ou residente” (p. 40). 32 em ter executado esse plano” (p. 41). O mérito de um grande homem é executar um plano de modo simples e com decisão: essa é mais uma herança charcotiana. Do mesmo modo, Freud tinha o plano de construir algo novo e ser reconhecido por isso. O anseio freudiano de apreender algo essencialmente novo era o que o sustentava em sua empreitada. Opinião que pode ser sustentada pelo próprio texto do relatório ou evidenciada em qualquer texto de Freud, e também pelo que Porge (2010) denomina como um desejo de transmitir um saber inédito. Tal aspiração casa com a novidade que Charcot denunciava nas entrelinhas de seu discurso, mas que não poderia ser admitida pelo próprio Charcot. Suas demonstrações com os casos de histeria, nas quais colocava e retirava sintomas através da hipnose, eram suficientes para que ele ocupasse seu lugar como médicin des hôpitaux. Óbvio que há um desejo em Freud e Charcot que motivava suas dúvidas e planos, mas não é possível recuperá-lo, apenas seus respectivos projetos, produções e demandas. Além de relatar o modo de organização espacial e funcional, Freud (1956[1886]/1996) se preocupa em descrever Charcot como o “homem que chefia toda essa organização e seus serviços” (p. 41). Relata que apesar de ele ter a idade de sessenta anos, demonstra uma vivacidade, jovialidade e a perfeição formal ao falar, além de paciência e amor ao trabalho. Freud limita suas visitas ao Salpêtrière e abandona suas tentativas de assistir a outras conferências devido à atração exercida por Charcot, que, além disso, o faz declarar que as outras conferências proferidas por outros médicos eram “peças de retórica bem construídas” (p. 42). Para além da persuasão charcotiana, Freud se interessava pelo modo como Charcot tenazmente percorria sua busca pelo saber. 33 A fascinação por tal homem e a inadequação do laboratório de anatomia faz Freud abandonar a intenção de fazer sua investigação científica sobre os problemas anatômicos. Em contrapartida, a abundância de material novo da clínica do Salpêtrière demanda de Freud todos os seus esforços para se beneficiar do ensino oferecido por Charcot. A semana de Freud era organizada entre as aulas teóricas do professor francês, “que encantavam os ouvintes [com] as mais recentes pesquisas” (Freud, 1956[1886]/1996, p. 43), a apresentação dos casos clínicos típicos ou difíceis pelos seus assistentes, exames oftalmológicos efetuados na presença de Charcot e o trabalho nas enfermarias que eram sempre visitadas pelo mestre francês. Freud (1956[1886]/1996) relata que mais importante do que a experiência durante sua estada em Paris, foi o seu “constante contato científico e pessoal com o Professor Charcot” (p. 43). Dois pontos chamam atenção nesse constante contato: as pesquisas de Charcot eram sempre referenciadas pelos pacientes da clínica do Salpêtrière e o desânimo de Freud quando seu professor deixava algum desses casos afundar “no caos de uma nosografia ainda desconhecida” (p. 43). Freud herda a inclinação charcotiana de referências aos casos clínicos e uma nosografia ainda a ser desbravada. Pontos cruciais para a inscrição da psicanálise no mundo. Já que Freud nunca deixou de lado os casos clínicos para a construção de suas formulações teóricas, muito menos deixou de formular uma nosografia própria ao campo que estava constituindo. Charcot, por outro lado, não se preocupava com o tratamento da neurose histérica, bastava para suas demonstrações que os pacientes comprovassem suas hipóteses de que os sintomas histéricos não eram encenações, que ele poderia retirar e colocar sintomas pela via da sugestão hipnótica. 34 Ao contrário do que se poderia imaginar, a fascinação não era recíproca, pois Freud (1956[1886]/1996) confessa que: “não me foi dada preferência em relação a qualquer outro estrangeiro” (p. 43). Por outro lado, Charcot concedeu a Freud (1886a/1996) à oportunidade de traduzir suas conferências para o alemão, cujas conceituações eram pouco conhecidas, mas muito denegridas. Tal tradução foi publicada antes da original francesa. Freud (1892-94/1996) também traduziu as Leçons du mardi, acrescentando algumas notas de rodapé. De acordo com Freud (1925[1924]/1996) ele precisou oferecer tais préstimos, demonstrando mais sua busca pela aceitação de Charcot, do que uma aprovação propriamente dita. O deslumbramento de Freud é um ponto importante, mas não é tudo para que nessa relação, efetivamente, algo seja transmitido. Ele admite que Charcot transmitiu um conhecimento que o próprio não possuía (Freud, 1914/1996). Por exemplo, foi a partir do ensino de Charcot, que Freud se lembrou do caso de Anna O. relatado por seu amigo Breuer (Mannoni, 1994). A oposição freudiana em relação a algumas ideias do professor abre a possibilidade de que algo original possa advir. São as faltas no saber charcotiano que possibilitam a inscrição de uma teoria nova que dê conta do caos nosográfico que imperava no tratamento da histeria. Apesar da dívida de gratidão para com Charcot, Freud pôde se desvencilhar até certo ponto do arrebatamento causado pelo professor. Quando efetivamente Charcot morre, Freud escreve em seu obituário que aquele é o marco em que seu trabalho se separa do trabalho do mestre (Freud, 1893/1996). A tradução das lições de Charcot é recheada de notas que de certo modo contradizem algumas opiniões do mestre. Freud exercia seu direito de criticar segundo o seu próprio ponto de vista, 35 o que não obteve o salvo-conduto por Charcot, pois ele morreu antes que elas fossem publicadas (Freud, 1892-94/1996). Freud se familiarizou com a oposição desde os seus primeiros momentos na universidade, nos quais a massa rivalizava com os judeus por considerá-los inferiores: “Freud estava tão convencido da impossibilidade de evitar a resistência do público que, quando algum de seus escritos era aceito sem crítica, pensava que talvez tivesse tomado o caminho errado” (Mannoni, 1994, p. 105). Freud (1925[1924]/1996) ampara essa posição como algo que proporcionou “os fundamentos para um certo grau de independência de julgamento” (p. 17). Em sua relação com Charcot, não foi diferente. Tentava contestar o mestre quando questionava que as considerações de Charcot contradiziam certas teorias, mas Charcot retorquia: “La théorie, c’est bon, mas ça n’empêche pas d’exister”2. (Freud, 1892-94/1996; 1893/1996; 1914/1996; 1925[1924]/1996). Tal aperçu será repetido por Freud em vários de seus escritos. Em outras palavras, a teoria não impedia que os sintomas histéricos continuassem a existir e a insistir em contradizêla. Consequentemente, a clínica torna-se um lugar soberano para escutar, para dar lugar aos fenômenos que não cansam de contradizer os tradicionais saberes. O que demonstra a submissão de Freud aos seus achados. Para Freud (1893/1996), Charcot restaura a dignidade da histérica; ela não era mais uma simuladora e, por conseguinte, considerava que os médicos e os pacientes não sofreriam mais descrédito. Porém, demonstra com surpresa como Charcot não seguiu o caminho de problematizar a etiologia, a divisão da consciência, etc. para explicar a histeria. Segundo Freud (1893/1996), seu mestre francês relegava a histeria a mais um tópico da neuropatologia, apesar de fornecer 2 Em outras palavras, apesar da teoria ser algo bom, ela não impede os fenômenos que a contradizem de existir. 36 “uma descrição completa de seus fenômenos” (p.29), demonstrar que tais fenômenos seguiam “suas próprias leis e regularidades” (p. 29), e mostrar como reconhecer os sintomas para possibilitar o diagnóstico. Charcot suportava comunicar que a etiologia da histeria se devia à hereditariedade, e que se tratava de uma degeneração, além disso, “negava à hipnose qualquer valor como método terapêutico” (p. 31). Freud (1892-94/1996; 1893/1996) não conseguia coadunar essa ideia com a prática de Charcot de reproduzir artificialmente as paralisias histéricas. Ele apontava as contradições e fazia objeções à teoria etiológica de Charcot. Como Charcot esclarecia o mecanismo do fenômeno histérico e permanecia em uma abordagem puramente nosográfica da histeria? Como é que ele faz tudo isso e não consegue extrair que isso pode produzir algo sobre as histéricas, um tratamento, um saber inédito? Perguntas que resumem o pensamento de Freud sobre tais juízos, um enigma que se constituía em resposta as lacunas deixadas por Charcot. Sua solução foi procurar “delinear uma teoria psicológica dos fenômenos histéricos com base nos trabalhos escritos de Charcot” (Freud, 1892-94/1996, p. 183). Em resposta ao enigma causado pelo trajeto de Charcot, Freud (189294/1996) já antecipa sua insatisfação com a sugestão hipnótica e afirma que o único fator indispensável para a etiologia da histeria são as influências nocivas sexuais. Freud (1914/1996) marca o início da psicanálise quando deixou de usar a técnica hipnótica e passou a utilizar as associações livres. Ele próprio sofria desagrado e repúdio, principalmente, pela conceituação nova e original do sexual como etiologia da histeria que herdou, segundo ele (Freud, 1914/1996), de Breuer, Charcot e Chrobak: “esses três homens me tinham transmitido um conhecimento que, rigorosamente falando, eles próprios não possuíam” (p. 23). 37 Frente às três considerações desses homens sobre “secrets d’alcôve”, “la chose génitale” e “virgo intacta”3, Freud se surpreende como eles, sabendo disso, não divulgam ou fazem um trajeto científico a respeito da causação sexual dos fenômenos histéricos: “essas três opiniões idênticas, que ouvira sem compreender, tinham ficado adormecidas em minha mente durante anos, até que um dia despertaram sob a forma de uma descoberta aparentemente original” (Freud, 1914/1996, p. 23)4. Breuer, Charcot e Chrobak ao serem questionados sobre as causas dos fenômenos histéricos retorquiam que se tratava de uma doença causada por problemas sexuais, mas, eles não levavam isso a sério. Por outro lado, Freud consegue formular uma teoria a partir desse enigma. Ele leva isso a sério, toma ao pé da letra e persiste, “apesar dos detalhes contraditórios, até conquistar-lhe um lugar entre as verdades aceitas” (Freud, 1914/1996, p. 25). Para ir além, nessa transmissão, para que se constitua o próprio estilo freudiano foi necessário o passo de Charcot e das histéricas. Mesmo dentro da universidade, Charcot pôde se posicionar de maneira análoga as histéricas de Freud. Ele, por sua divisão, deixa de herança um domínio que não pôde deflorar. Tal violação é feita por Freud quando consegue se opor ao mestre e produzir um saber totalmente novo sobre as histéricas. O que faz Freud não seguir a via de muitos discípulos de Charcot? Por que ele não segue o percurso da neuropatologia? Não é possível saber o que causou o trajeto freudiano divergente dos discípulos de Charcot. Pode-se no máximo afirmar que Freud possui o plano de constituir um saber inédito, ser reconhecido por isso. Consequentemente, que aquilo que ele herda de Charcot dentro da universidade possa ser um saber inédito, 3 Segredos de alcova, a coisa genital e virgem intacta. 4 Ponto de assunção freudiana sobre sua própria intuição sobre a causação sexual da histeria. Ele não sabia que as posições desses três homens o influenciaram. 38 permite produzir algo novo. Além disso, Freud precisava de algo mais, pois ele estava sempre em uma luta constante para defender esse saber inédito. O que Freud sublinha das características de Charcot que o fizeram ficar fascinado não é suficiente, nem mesmo sua oposição e não-compreensão frente ao mestre. Nesse ponto, não há como escapar ao questionamento sobre outras sustentações que Freud tinha, além do anseio de conduzir um saber inédito sobre o mal-estar na civilização. A principal delas é sua relação com Fliess, que é considerada por muitos a análise original (André, 1987; Mannoni, 1991; Porge, 2010). Suas correspondências com Fliess versam sobre um Freud atrelado ao coito interrompido, masturbação, etc.; a observação dos comportamentos sexuais, já que seus mestres diziam que era falta de um coito normal que causava a neurose (Freud, 1950[1892-1899]/1996). Ele precisa do apoio de Fliess, mesmo este sendo louco. Mas nesse ponto já há uma fuga de Freud, algumas contradições, dúvidas, receios e dificuldades no próprio texto. Ele deixa algo em aberto, nas entrelinhas parece que ele suspeita que não sejam os atos sexuais anormais em si os causadores da histeria, mas algo que ainda é lacunar para ele: “falta-me algo” (Freud, 1950[1892-1899]/1996, p. 241). É nesse momento, em carta à Fliess, que Freud se qualifica como histérico e passa a paciente de si mesmo (Mannoni, 1994)5. Além disso, pode-se fazer um paralelo entre a análise de Freud e seus avanços na teoria, ou seja, o que era possível para ele suportar naquele momento. As considerações de Sabina Spielrein sobre a teoria de uma pulsão autodestrutiva que antecipa Freud em suas formulações teóricas serve a esse propósito. De acordo com Cromberg (2008), em 1911, uma das primeiras mulheres psicanalistas e 5 Ponto que favorece a hipótese que o discurso histérico promove a produção de um novo saber. 39 analisada por Jung, Sabina formula algo a partir do que Freud tinha escrito: haveria algo de desprazeroso no prazer, uma pulsão autodestrutiva. Ele apenas consegue formular isso em 1920, com sua teoria sobre a pulsão de morte, somente nove anos depois, após ter rechaçado a conceituação de Sabina. Ele não tinha condições de ouvir o que ele próprio escrevia. Tal qual Charcot, apesar de si mesmo, transmitiu a Freud um saber que ele próprio não possuía, Freud indicou à Sabina as bases necessárias para a formulação de uma pulsão autodestrutiva. Provavelmente, ela tenha conseguido, pois havia passado por uma análise. Freud fizera apenas uma análise torta, denominada autoanálise, mas que se esboçava com seu amigo louco Fliess e com os outros que o substituíram sejam nas correspondências ou em suas relações, a partir de 1902, com os outros que se juntaram a ele para formar a IPA6. Essa sustentação, portanto, era levada de forma cambaleante. Desse modo cambaleante, Fliess, “simplesmente por existir (nem sequer estava lá, mas em Berlim), ao mobilizar o desejo inconsciente, tornou possível essa estranha aventura, e foi Freud quem permitiu que ela pudesse se repetir” (Mannoni, 1994, p. 69). Essa análise está descrita de certa forma na correspondência entre Freud e Fliess, os rascunhos e aflições que pululavam na tessitura dessas cartas: “foi diante da ignorância de Fliess que [Freud] deu os passos decisivos” (Mannoni, 1994, p. 62). Quando Freud (1950[1895]/1996) tenta construir seu projeto para uma psicologia científica, relata a Fliess sua dificuldade em produzir este projeto e sua vontade de não vê-lo nunca publicado. Um projeto inacabado foi publicado só depois da sua morte, mesmo com a cópia de Freud destruída por ele. No entremeio do projeto, Freud deixa transparecer que Fliess dava forças e fôlego para que ele continuasse 6 International Psychoanalytic Association. 40 produzindo aquelas ideias. Porém, isso não foi suficiente para que este projeto fosse acabado e aceito por Freud para ser publicado. Possivelmente, Freud intuísse que o que estava escrito ali não tinha uma ligação com o projeto de sustentar um saber inédito. Freud se sentia devorado e exausto por essa tentativa de produzir uma psicologia científica (Strachey, 1996d). Possuía duas intenções: “descobrir que forma tomará a teoria do funcionamento psíquico se nela for introduzido um método de abordagem quantitativo, uma espécie de economia de força nervosa, e, em segundo lugar, extrair da psicopatologia tudo que puder ser útil à psicologia normal” (Strachey, 1996d, p. 335). Essas duas questões são consequências do seu afinco pela busca de algo novo, continuará com elas por toda a sua obra: a libido e a utilização da psicopatologia para abordar a vida normal. Nesse texto, Freud deixa escapar que suas conclusões dependiam das observações clínicas dos pacientes neuróticos (Freud, 1950[1895]/1996). Por fim, ele se convence que o projeto não é interessante. Parece não querer seu nome ligado a esse rascunho entregue a Fliess, pois tudo nele está ligado às funções anatômicas, neurológicas, no qual a hipótese central dependia do funcionamento dos neurônios em um sistema, mais que isso, tinha como estrutura de funcionamento o próprio neurônio. Talvez, ele buscasse com o projeto um modelo fictício sem relação direta com a neurologia, sua metapsicologia: “a partir do momento em que se vê em seu próprio terreno, (...) já não segue ninguém, e é aí que está a parte mais sólida de sua contribuição” (Mannoni, 1994, p. 150). 41 Por outro lado, claramente lá estão as bases para o que ele vai desenvolver depois. Possivelmente, ele intuísse que a psicanálise não funcionaria, se ele não excluísse a anatomia e a fisiologia. Outra herança charcotiana, pois Charcot excluía a fisiologia do seu campo operatório: a observação clínica dos franceses, indubitavelmente, ganha em auto-suficiência, no sentido de que relega a plano secundário os critérios relativos à fisiologia. A exclusão destes, no entanto, pode ser a principal explicação para a impressão enigmática que os métodos clínicos franceses causam ao não-iniciado. Aliás, nisso não há nenhum descaso pela fisiologia, mas uma deliberada exclusão, que é considerada vantajosa (Freud, 189294/1996, p. 177). Sobre o funcionamento do seu plano, Freud (1950[1895]/1996) relata que o projeto funciona como uma máquina que anda sozinha, mas se assusta com tal funcionamento, talvez por não tratar em si de algo novo, ainda não era a psicanálise. Pode-se abstrair e afirmar que as formulações feitas no projeto pudessem servir aos neurólogos, mas não aos psicanalistas. Posição fundamentada pelas várias críticas feitas ao projeto pelo próprio Freud, o que o fez não publicá-lo. Obra inacabada e renegada por Freud. Apesar de almejar muito o cientificismo do seu novo campo de saber, talvez Freud previsse que esse campo não pudesse estar muito ligado à ciência natural, biologia, fisiologia, histologia, etc, para que um saber original pudesse ser produzido. Sobre isso, conclui Lacan (2003c): “que o substrato biológico do sujeito esteja implicado na análise até o fundo não resulta, em absoluto, que a causalidade que ela descobre seja redutível ao biológico. O que é indicado pela ideia, primordial em Freud, de sobredeterminação” (p. 174). 42 Em sua defesa infatigável “dos direitos do trabalho puramente clínico” (Freud, 1893/1996, p. 23), Charcot satisfazia-se em ver algo totalmente novo: “costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia [e] indagar por que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a ver” (p. 22). Ao repetir que “a maior satisfação humana era ver alguma coisa nova” (p. 22), Charcot lega a Freud uma suspeita frente às tradições teóricas; inclusive as que o próprio Charcot produzira com seu método anátomo-clínico, no qual as mudanças anatômicas subjaziam à doença. Na época, Freud questionava seu mestre dizendo que suas considerações clínicas contradiziam as tradicionais teorias, a resposta de Charcot era direta: “tanto pior para a teoria, primeiro os fatos clínicos” (p. 23). Não se deve perder de vista que foi a partir da clínica que Freud pôde formular o que ele construiu no projeto. Ele via no campo médico um modelo para construir seu sistema psíquico, mas talvez ele intuísse que o antigo saber médico prevaleceria ao invés do que o projeto trazia como original. Freud (1950[1895]/1996) pretendia constituir um novo campo, uma psicologia que pudesse incluir no rol das ciências naturais. Retornava a tradição teórica e a ambição de ser reconhecido, mas sua suspeita o impede de terminar tal projeto. Aquilo que pululava de sua clínica, os fenômenos histéricos e o sexual impediram Freud de concluir um projeto que parecia mais atrelado às tradições teóricas do que aquilo que não cansa de existir. Retomando o intuito do capítulo, foi percorrida de forma sucinta a trajetória de Freud em relação à Charcot. Durante esse convívio, segundo confidência a sua noiva, Freud percebeu uma mudança em si próprio sendo promovida: viu-se exaurido por Charcot e desarraigado de suas metas e opiniões (Strachey, 1996e). Freud precisou extirpar seus intuitos anteriores com a neuropatologia, sua 43 investigação científica sobre os problemas anatômicos. Tal exclusão não se deu de forma abrupta e isso que era excluído sempre retornava ao texto freudiano. A exclusão ganha força em uma lógica da herança. É preciso que algo seja excluído para que uma lógica discursiva funcione, que algo seja sustentado com seriedade. Ao citar a frase de Goethe, “Aquilo que herdastes dos teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” – Freud mesmo sem saber sugere que tal herança, que não se sabe qual é efetivamente, precisa ser tomada como própria. Como se dá essa operação? Em uma primeira acepção pode-se asseverar que essa transmissão é consumada pelo sintoma, modus operandi de resposta às exigências que rodeiam o mundo humano. Além disso, se se considera que há sempre um excluído em qualquer transmissão, que na verdade o excluído subsiste em sua função operativa, não há herança que possa ser herdada sem um preço a ser pago. Quando Freud sustenta um campo em seu estado nascente não se pode desconsiderar o preço que ele teve que pagar pelas suas exclusões. Ele reconhecia seus limites e sabia que não podia tudo dizer, que seu campo não formava um sistema que diz sobre todas as coisas da vida. Pelo contrário, as limitações da sua ciência eram sempre relembradas por ele, para que não se perdessem em incoerências e inconsistências e pudessem “sustentar, com todas as forças, as próprias convicções baseadas na experiência” (Freud, 1914/1996, p. 66). Porge (2009) defende que a forma romanceada de Freud tratar os casos clínicos é um modo dele se incluir no caso. Essa inclusão se dá de tal modo que se evidencia a posição freudiana no tratamento do caso, mais do que sua solução. Se se presta bastante atenção, trata-se de casos inacabados e de sucessos duvidosos, cuja principal preocupação é a comprovação da hipótese do inconsciente. Será que esse movimento de incluir-se é algo proveitoso para o andamento da psicanálise? 44 Quem sabe a narrativa romanceada de Freud se deva à própria natureza da questão que seu tratamento contemplava, seu caráter existencial (Mannoni, 1994). Provavelmente, quando vier a lume a posição oposta de Lacan de não construir os casos clínicos, mas dar consequências aos casos romanceados por Freud e possivelmente aos seus próprios casos, se obtenha resposta a essa pergunta. Por ora, sublinha-se a diferença entre essas posições e como a posição freudiana foi necessária para o surgimento do campo da psicanálise, “posição de inventar a prática que exercia” (Porge, 2009, p. 51). O caráter subjetivo da posição do romancista Freud é colocado em evidência no nascimento de sua disciplina, o que gera algumas imprecisões e imitações por parte daqueles que começam a estudar a psicanálise. Apesar de sua posição cientificista, Freud não estava inserido totalmente nessa lógica. Quando, por exemplo, sublinha sua primeira divergência de Breuer remete a teoria deste sobre os estados hipnóides, como uma teoria “até certo ponto fisiológica” (Freud, 1914/1996, p. 21), em contrapartida, ele “via a questão de forma menos científica; parecia discernir por toda parte tendências e motivos análogos aos da vida cotidiana” (Freud, 1914/1996, p. 21). O que esclarece sua posição de denúncia ao que segue a lógica vigente. Apesar de demandar para si uma posição de homem da ciência, Freud sucumbe a psicopatologia da vida cotidiana, a inclusão de si no caso clínico, a demonstração de suas posições subjetivas para compor o campo nascente da psicanálise. Seu sintoma é dar conta do mal-estar que ronda a civilização, mal-estar que ele acredita poder situar, que de algum modo foi forjando suas convicções sobre a hipótese do inconsciente. Suas recomendações estão por toda parte em sua obra. Principalmente, recomenda que ninguém siga seu exemplo (Freud, 1925[1924]/1996). Isso deveria 45 bastar para incutir nas cabeças daqueles que leem seus textos uma desconfiança mínima de que o caminho ali trilhado foi o de Freud. Que cada um precisa encontrar seu próprio sintoma frente ao saber que se imiscui na experiência clínica analítica. Tal capítulo foi considerado uma operação de risco, pois “aos biógrafos pôde parecer que alguma coisa em seu passado preparava Freud para suas descobertas, mas, igualmente, que foram acasos e encontros que o conduziram até eles” (Mannoni, 1994, p. 19). Tentou-se exprimir o encontro contingente de Freud com Charcot. O professor sem saber sublinhou no aluno um anseio que este já carregava: a busca por algo novo. Freud deu vazão a tal aspiração constituindo um novo saber-fazer sobre o mal-estar que a neurose implicava. As operações freudianas possibilitaram a inserção de uma nova arte ao tratamento do mal-estar que não era reconhecido, que sucumbia ao caos nosográfico e uma clínica da demonstração cênica. A partir do que Charcot pôde demonstrar cenicamente, Freud (1893/1996) constitui um problema: “como é que um paciente histérico é dominado por um afeto em relação a cuja causa afirma nada saber?” (p. 28). Mais do que isso, ele “se comporta como se de fato soubesse disso” (p. 28). Na época, Freud extrai disso uma divisão da consciência, base para suas teorias sobre o inconsciente. Começa um percurso de idas e vindas, tentativas de concernir esse saber que não se sabe. Se como afirma Lacan (2005), um analista “só pode durar a título de sintoma” (p. 67), a permanência de Freud como analista na civilização continua, pois ele evidencia “alguma coisa que não tinha estritamente nada a ver com que quer que houvesse sido dito antes” (p. 69). O retorno a Freud é poder extrair o quê de inédito seu achado possibilitou surgir no mundo. Sobretudo, qual sintoma cada um pode tomar como seu na herança que ele deixou como legado. 46 CAPÍTULO 2 Jacques Lacan como analisante do não quero saber. O que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma. (Lacan, 2003, p. 310). 47 A síntese é em si uma redução para que algo passe a ser operativo. A intervenção desse capítulo é poder sintetizar a relação de Jacques Lacan com o não querer saber para que ela se torne operativa no dia a dia dos universitários que se propõem a estudar psicanálise. Torna-se necessária uma decomposição dos elementos que compõem a tese proposta pelo capítulo: a posição de Lacan como analisante do seu não querer saber é o limite para que haja transmissão, o que supõe e fomenta do lado do aluno uma posição de analista. Em poucas palavras, a posição lacaniana pode ser situada no discurso a partir do qual ele propõe seu ensino, discurso do analisante, que se pode fazer coincidir com o discurso da histérica, aquela que nada quer saber da castração, mas por esse motivo é agente da castração. O enfrentamento com tais elementos na discussão teórica talvez permita situar o modo peculiar do tratamento lacaniano para as formulações e teses freudianas: O que eu quero? – senão sair desse verdadeiro impasse, mental e prático, ao qual chega atualmente a análise. Vocês veem que vou longe na formulação do que digo – importa submeter a própria análise ao esquema operacional que ela nos ensina, e que consiste em ler, nas diferentes fases da sua elaboração teórico-técnica, o modo de ir mais adiante na reconquista da realidade autêntica do inconsciente pelo sujeito” (Lacan, 2009b, sem 1, p. 36). Em todo lugar e momento, Lacan deixava pistas sobre sua relação com o saber, sobre seu posicionamento frente ao que se articula como saber. Seu caminho foi facilitado, pois antes houve/ouve Freud. Longe de descartar o saber tradicional, Lacan operava com ele. Seja em suas paramnésias, nas quais utilizava ideias que estavam ao seu alcance em um tom enigmático sem a preocupação de recorrer à autoridade para produzir algo novo; seja nos momentos em que seu ensino 48 recuperava os saberes tradicionais para criticá-los, relançá-los a uma subversão na qual eles se tornavam operativos, a preocupação de Lacan recaía sobre a formação dos analistas. Alcançou-se com o capítulo anterior a formulação da psicanálise como sintoma freudiano. Nesse capítulo a tarefa será sintetizar o modus operandi lacaniano frente a esse sintoma. Lacan tomou tal sintoma como sua herança, fez dele seu próprio sintoma ao seu estilo. Antes mesmo de romper com a IPA, Lacan propôs seu retorno a Freud. Desconfiava, portanto, do afastamento dos analistas em relação ao sintoma que Freud descobriu. Desde o início, retornar a Freud nunca foi repetir o que Freud disse, mas saber as vias por onde seu pensamento vagou, questionar e reduzir suas formulações de modo que elas se tornassem operativas para aqueles que exercem a psicanálise, e não mais uma imitação pastiche de Freud. Da mesma forma, o objetivo aqui proposto será o de reduzir as formulações lacanianas para que elas possibilitem um norte para os universitários que exercem a psicanálise. Frente à inversão lógica proposta por Lacan (1992) do discurso do universitário quando este é agenciado por aquele que se atreve a ensinar psicanálise; o que dos ensinamentos de Lacan possibilita uma saída insuspeitada para o aluno no ensino da psicanálise na universidade? Declarar logo de início seus objetivos parece tender a uma vertente universitária, mas em nada contradiz os limites que a teoria lacaniana impõe. Talvez, os neófitos que sucumbem ao sintoma freudiano permaneçam em um impasse sem saber o que fazer, não querendo saber, ou o inverso, acreditando poder saber tudo a partir da psicanálise. Alcançar a verdade pelo saber é uma desventura em série que parece levar ao pior. 49 Desse modo, por enquanto, fica-se com o lembrete crônico7 de Lacan (1992) ao afirmar que é querendo sair do discurso do universitário que invariavelmente se permanece nele. Ao dar prosseguimento a tal circunscrição, delimitam-se três passos imprescindíveis para a composição do capítulo: o tratamento de Lacan dado em seu ensino ao sintoma freudiano, os utensílios de que ele se serve para dar conta disso e a finalidade do seu ensino como formação do analista. 2.1 – O tratamento dado por Lacan ao sintoma freudiano: entre a poesia e a matemática. Pretende-se situar o ensino de Lacan em uma analogia com a obra de que ele se utiliza em seu primeiro texto dos Escritos – A carta roubada de Edgar Allan Poe –, algo entre o poeta e o matemático, onde o ideal é a simplicidade. Algo de que o detetive Dupin, personagem do conto, se apercebe para descobrir as artimanhas do ladrão da carta: “sendo poeta e matemático, certamente raciocina bem” (Poe, 2005, p. 25). O que faz o amigo de Dupin se surpreender e afirmar que essa opinião é contrariada pelo consenso da maioria das pessoas, contra uma ideia elaborada ao longo dos séculos, de que o poeta não raciocinaria bem, seria um louco, vítima das paixões da alma. É nesse momento, que Dupin lembra ao amigo que o ladrão é também um matemático. Acredita-se, portanto, que ser poeta e matemático é ser simples, sutil, no que essa simplicidade tênue evoca o contra-intuitivo: o ladrão consegue esconder a carta no local mais óbvio que alguém poderia imaginar, ou melhor, a vista de todos. Para 7 Tal formulação foi elaborada por Rinaldo Voltolini em mesa redonda proferida no 8º Colóquio Internacional do LEPSI/ 3° RUEPSY. 50 ser psicanalista é preciso passar por uma experiência que não cansa de ser contraintuitiva, a experiência analítica, que contraria o consenso da maioria das pessoas. Uma carta à vista de todos acaba não sendo encontrada pelos que, efetivamente, a procuram. Ela torna-se um achado apenas para Dupin. Apenas um matemático e poeta tem a astúcia de esconder uma carta em um local que qualquer um poderia achar. A partir disso, pode-se pensar que a poesia e a matemática juntas trazem a seriedade necessária ao rigor teórico-clínico requerido por Lacan para se formar um analista; pois seus achados estão à vista de todos, mas a busca de saber a verdade os impedem de encontrá-los. Em seus textos escritos, Lacan (1998) não é nada esclarecedor, pelo contrário sua alcunha é de obscurantista, seu estilo barroco e gongórico já foi tema de diversas discussões e textos. Porém, se se reconhece sua advertência de que ele publixa, a leitura já é acautelada. Ele afirma com todas as letras que seus Escritos não eram para ser lidos, e se surpreende com o sucesso de exemplares vendidos (Lacan, 2005). Tal sucesso, provavelmente, é efeito do seu ensino ou da aura que os leitores adquiriam quando pronunciavam que liam Lacan. É comum ouvir que os lacanianos são incompreensíveis, que preferem o obscurantismo à clareza, etc. Mas esse recurso retórico lacaniano não teria uma finalidade? Não é objetivo desse capítulo justificar as escolhas de Lacan, antes conseguir extrair uma fórmula para conseguir permanecer na universidade sem cair nas vertigens que tal lugar proporciona, e poder sustentar o sintoma freudiano. Se de um lado temos escritos que são verdadeiras condensações daquilo que ele produzia durante um ano inteiro, “um concentrado totalmente incrível, que convém colocar na água como as flores japonesas para ver desdobrar-se” (Lacan, 51 2005, pp. 70-71); por outro lado, seus seminários são oportunidades de acompanhar passo a passo as trajetórias de Lacan frente ao desafio de formar analistas. Uma precaução já é necessária nessa comitiva, ele não se absorve em explicar noções e conceitos que já foram pronunciados e estudados em seminários anteriores. Isso não quer dizer que é necessário começar uma leitura do ensino lacaniano pelo primeiro seminário, pois mesmo o primeiro seminário possui temas e conceitos que já foram objeto de estudos e discussões anteriores. Além disso, há o problema das diversas versões que um ensino transmitido oralmente permite produzir, não há uma versão que possa ser considerada um escrito lacaniano, elas são efeitos de seu discurso para o bem ou para o mal. Como dizia uma professora a um ingressante na classe dos interessados pela psicanálise, a psicanálise é um bonde que se pega andando... Nesse estado de iminência constante, se produz a posição de que nem tudo precisa seguir uma lógica linear e universal. Os saberes de que Lacan se utiliza tendem ao singular. De acordo com Lacan (1992), a psicanálise não se transmite como qualquer outro saber, pois o psicanalista não transmite saber, o que não quer dizer que ele não tenha nada a saber. O que ele necessita saber deve buscar em outros campos ou na boca dos seus analisantes. São os saberes que tendem ao singular, que dizem que nem tudo é da forma do universal, que interessam à formação dos analistas. Porge (2009) defende que o estilo de Lacan pode ser classificado como poesia. Seus argumentos são verdadeiramente interessantes, inclusive passagens em que Porge (2009) consegue retirar versos alexandrinos dos escritos de Lacan. Outras posições podem ser extraídas dessa ideia da poesia que não são contempladas por esse comentador. Pode-se pensar que alguém que faz poesias enquanto transmite um saber está deslocado, é marginal à civilização, um louco. Do 52 mesmo modo, que suas considerações não podem ser levadas a sério por se tratar de uma brincadeira, um jogo que faz com aqueles que estão interessados em aprender algo sério. Por outro lado há a matemática encontrada nos ensinamentos de Lacan. Ele ergue um lugar especial à lógica matemática em seu ensino, seja nas formulações de seus grafos, seja nos exemplos propostos com os números e fórmulas, seja na álgebra que ele cria para dar conta dos seus discursos ou na topologia, ramo da matemática da qual ele se utiliza para enlaçar os três registros do psiquismo humano. Pode-se argumentar que mesmo na poesia há a métrica que já é algo herdado da matemática, única lógica possível de acordo com Lacan (2008). Portanto, há outra posição que Porge (2009) não evidenciou que também é necessária a uma posição de suspeita. Lacan (1985), em seu vigésimo seminário, realiza a distinção entre uma revolução que gera retorno e uma revolução subversiva. Sua reflexão começa com a consideração de que a História não dá conta de uma verdade, mas reafirma uma busca de saber que cada um dos historiadores faz. Em outras palavras, quando Lacan sustenta que Kepler é subversivo, faz com que Copérnico entre apenas como alguém que retorna à história filosófica sobre o que é o centro. Muitos afirmam que a mudança de centro do universo da Terra para o Sol feita por Copérnico é uma verdadeira revolução. O que Lacan (1985) faz é sustentar que só há revolução subversiva quando a história filosófica sobre o centro sofre um baque. Com Kepler não há mais centro, os planetas não giram em círculos e sim em elipse, há um foco que pode ser calculado. É a fórmula do foco que permite que se calcule todo desenvolvimento da física sobre os astros. Toda história filosófica de 53 milhares de anos sobre o centro cai com a fórmula da elipse. O saber anterior passa a funcionar do modo específico que a fórmula sustenta. Desse modo, a fórmula traz uma aproximação com o real da castração (verdade) que a historia não traz. É um modo de se posicionar em relação à verdade que não necessita das palavras. Quando se maneja uma fórmula há um funcionamento que se sobrepõe aos significados que poderão ser produzidos. Como nos discursos constituídos por Lacan (1992) que, efetivamente, são sem palavras, mas operam o funcionamento do objeto a. Consequentemente, o emprego que se faz da letra em matemática é a possibilidade de que haja subversão do saber, na qual aquilo que herdamos pode ser articulado sem que nos embaracemos com a tentativa de saber a verdade, saber as origens. A verdade fica como causa, a partir de uma fórmula que subverte toda história anterior a cada um pode-se viver. O uso da fórmula remete à subversão que Lacan considera necessária a qualquer revolução. De acordo com Lacan, em seu sentido, revolução é o retorno ao ponto inicial, não se trata de mudança das questões que vinham sendo formuladas anteriormente, mas uma retomada das mesmas questões, conceituações e conclusões. Para que algo novo seja produzido, para que algo reste e resista como subversão é necessário à extração de uma lógica de funcionamento por uma fórmula matemática. Ao psicanalista, como sustenta Lacan (1992), não é necessário uma permissão de conduzir (carta de motorista), pois cada um tem que se confrontar ao seu modo com a fórmula de operar uma análise. Ela se constituirá no momento em que ele na sua própria análise passar de um discurso ao outro e adquirir um manejo, um saber-fazer com o funcionamento próprio ao discurso. 54 2.2 – Utensílios para a cozinha do Sr. Lacan: os operadores da clínica. Lacan não construía o romance do caso clínico tal qual Freud, mas suas intervenções partiam da clínica. Todas as suas formulações eram para dar conta das operações indispensáveis à clínica psicanalítica, para que houvesse analistas. Sua tentativa de construção teórica é constituída para que seus alunos não ficassem tão presos a ele, que pudessem subverter a lógica da mestria e o recurso aos mestres. Ele relata que os analistas em sua época apenas queriam a carteira de motorista (permis de conduire), a permissão de conduzir uma análise (Lacan, 1992). Para tanto não estavam interessados nos fundamentos da psicanálise, em seus operadores, imitavam Freud e erigiam regras a partir do que ele chamava de recomendações. Portanto, para não ser imitado, Lacan propõe operadores teóricoclínicos para que o próprio analista construa seu savoir-faire. Lacan procura no retorno a Freud a operabilidade de utilizar um determinado conceito, de modo que os conceitos produzissem efeitos na clínica. Não se pode destacar o conceito de sua utilidade clínica. Essa consideração lacaniana é bem demarcada em seu ensino. Quando, por exemplo, situa a inoperatividade do complexo de Édipo na clínica, relegando tal conceito ao estatuto de sonho freudiano, Lacan (1992) promove uma suspeita quanto às noções abstraídas e bem elaboradas por Freud para dar conta de suas angústias e descobertas, sem uma ligação real com a clínica. Se retornar a Freud é buscar suas fundamentações para a clínica e seus momentos de impasse, cada um pode ter a oportunidade de construir um saber novo sobre isso. Freud (1905/1996), por exemplo, situava a doutrina das pulsões como a 55 mais incompleta e, ao mesmo tempo, a mais importante doutrina para a psicanálise. Possivelmente, seja esse o curso que se deve tomar para que haja analistas, para que alguém interessado pela prática analítica possa engajar-se em um trabalho que não cansa de ser incompleto. Tendo isso em mente, é possível recortar alguns utensílios teórico-clínicos utilizados por Lacan para compor o savoir-faire do analista: os esquemas metafóricos, os matemas e a topologia. Seria errôneo presumir que tais utensílios possuem uma serventia apartada da experiência clínica de Lacan. Porém, essa possibilidade é formulada todos os dias por estudiosos mais interessados nas linhas de força da teoria lacaniana e quanto ela resiste aos outros saberes. Provavelmente, pela preocupação fomentada por tais teóricos partir de outros campos de saber é que sua justificativa de existência não pode ser negada. Também não se pode afirmar que todos que se dirijam à psicanálise vindos de outros campos façam uma leitura enviesada da teoria. Alguns parecem que se deixam penetrar pelos avisos lacanianos e conseguem fazer uma leitura ciosa dos problemas epistemológicos em Lacan. Um exemplo claro é o do teórico Richard Simanke (2002), em seu livro Metapsicologia Lacaniana, no qual detalha os primeiros anos de formação de Lacan e como as discussões teóricas e mestres da época interferem no posicionamento lacaniano sem partir para uma busca sem fim pelo saber. Pelo contrário, consegue centralizar suas preocupações na suposição de que Lacan é essencialmente um clínico. De modo similar, esse capítulo tem como objetivo dar consequências à afirmação que Lacan é um clínico, assim como apresentar o modo peculiar com que seus instrumentos teórico-clínicos podem auxiliar na formação do analista. 56 2.2.1 – Os esquemas metafóricos: o modelo do esquema óptico. É preciso criar metáforas para que elas se esgotem, de modo a “perceber” o inesperado que sobra dessa operação, e que pode ser minimamente manipulado. A tentativa lacaniana com o esquema óptico é cunhar uma metáfora que mostre como funciona a antecipação lógica da função do eu. Lacan se interessa pela forma como se dá a constituição do sujeito. Com seu retorno a Freud e profundo interesse em criar um método para transmissão das suas ideias, ele consegue criar, através do esquema óptico, da metáfora mãe/filho e dos novos conceitos de alienação e separação, a sua teoria sobre o sujeito. E o mais importante pra ele, trazer uma intervenção clínica para os problemas que decorreriam dessa suposta má relação. O fator importante pra Lacan foi, além de propositalmente retornar a Freud no que diz respeito à construção do método sobre o/um impossível real, desenvolver um modo simples para transmissão de suas ideias sobre a constituição do sujeito, e assim fixar os conceitos de alienação e separação ligados diretamente a estas. Lacan não só ficava intrigado com a explicação do impossível, mas principalmente na maneira que ele se dedicaria a teorizá-lo, e no que isso impactaria os psicanalistas por ele formados: “a autorização que Freud nos dá de utilizar relações auxiliares para nos aproximarmos de um fato desconhecido, me incitou a dar provas de uma certa desenvoltura para construir um esquema.” (Lacan, 1994, p.92) Lacan propõe, então, um esquema para explicar a hipotética relação da mãe com a imagem que ela tem do filho. O esquema demonstra que é preciso estar a certa posição (do espelho côncavo) para que a mãe se engane com relação à 57 imagem que é criada, o filho. E quanto mais afastada ela está do ‘objeto’ mais fácil se dá o engano; por outro lado sua posição precisa estar limitada por um cone de observação em relação ao objeto. A ilusão que se dá com a imagem real em um esquema óptico (descrito) é extremamente rica, pois a mãe enxerga na criança a sua própria imagem, supõe no filho um sujeito que ainda não há. Ou seja, ele se utiliza dessa metáfora para indicar a posição da mãe e sua relação com a criança ‘figurante’ de sua própria imagem. Lacan (1994) volta a salientar que seu esquema é infantil, pois a sua posição se sustenta a partir da hipótese, ou seja, não há razão para considerá-lo verdade ou sequer buscá-la. Nesse momento Lacan cria dois conceitos que são importantes na formação da teoria do sujeito, que são: alienação e separação. Dado que há um sujeito, supõe-se que ele passou por uma constituição. Mas como se dá isso? – questionou-se Lacan. Já que a imagem da criança se forma a partir da imagem da mãe, é necessário que eles sejam, de alguma forma ‘um’, como outrora foram. É preciso que essa ‘carcaça’ (que nada mais que a imagem ‘real’ do filho) esteja alienada à imagem da mãe. A hipótese lacaniana é: se a criança permanecesse nesse lugar (à imagem da mãe), não haveria separação entre objeto/imagem, mas sim alienação. Ou seja, por indução oposta, se há diferença há separação. Então a primeira errônea impressão é que a criança está alienada aos pensamentos da mãe. E a partir daí abre-se a discussão para infinitos pormenores, tais como o porquê desta alienação. Porém é fácil perceber a intenção de Lacan, que insiste em afirmar que a metáfora com o esquema óptico (mãe/filho) é uma hipótese criada pra sustentar a teoria da constituição do sujeito, e que muito mais importante que a própria teoria é o modo de intervenção. 58 Partindo do mesmo princípio, o “método” criado por Lacan se dá também hipoteticamente, isto é, frente a uma criança para qual o analista acredita que não houve separação, supor que há um sujeito ali já resulta no mesmo (método) implícito. A preocupação de Lacan é a priori trabalhar o método, a aplicação e a simples metáfora que serve ao papel de ensinar os conceitos por ele criados: separação e alienação. E o desenvolvimento da teoria de constituição do sujeito é tão prática quanto se possa imaginar, se entendidos os devidos detalhes, abordados constantemente em seus seminários. Seu aparelho de pensar serve para que os analistas manejem por si mesmos conceitos impensáveis, para deixar de distinguir mal o real, o simbólico e o imaginário. Em outras palavras, Lacan (1994) esquematiza esse aparelho unicamente para que não se fique tão preso ao imaginário: Esquematizo, como vocês percebem, mas o desenvolvimento de uma metáfora, de um aparelho de pensar, necessita que no início se faça sentir para o que serve. Vocês verão que esse aparelho tem uma maneabilidade que permite jogar com todas as espécies de movimentos (p. 96). 2.2.2 – Os matemas: os quatro discursos. A subversão proposta pela fórmula é que traz o momento de “descoberta totalmente original” as conceituações lacanianas. Possibilita a manipulação de um objeto que ao mesmo tempo é produzido pelo discurso e resta ao sistema do enunciado. A tarefa dos quatro discursos é possibilitar a operação do objeto a. Objeto que Lacan criou para dar conta daquilo que resta como mais-além do princípio do prazer. 59 A partir do ensino lacaniano no Avesso da psicanálise (Lacan, 1992), pode-se extrair que há um emprego particular de cada estrutura de discurso, na relação fundamental de um significante com um outro significante. Se, como afirma Lacan (1992), o discurso é o que subsiste sem palavras, mas não sem linguagem, em enunciados primordiais –, sua lógica denota uma fragilidade: trata-se apenas da linguagem como instrumento da qual se é efeito. Estranha contradição, a qual demonstra quão frágil é a compreensão que os humanos têm de sua existência; mais especificamente, quão frágeis são os humanos que demandam um sentido para o que não tem sentido. Essas relações são concebidas por Lacan (1992) como estatuto do enunciado, o discurso é um enunciado. O que quer dizer que sua lógica segue um enunciado manifesto. Pode-se situar a posição daquele que fala (parletre) em cada um dos quatro enunciados: o enunciado do mestre, da histérica, do analista e do universitário. A preocupação lacaniana é saber o modo pela qual a estrutura significante opera (Lacan, 1992). Cada um desses enunciados segue uma lógica discursiva, na qual um agente sustentado por uma verdade se dirige a um outro para produzir algo. Quer dizer que aquele que fala, do lugar mesmo que fala, pode ser situado em relação à verdade que o sustenta, o outro a que se dirige e aquilo que produz. Lacan (1992) situa tal agente do discurso como alguém que sofre uma ação, que é atuado (être jouée). Situa a fórmula pela qual suas letras (a, S2, S1 e $) manifestam relações constantes: 60 A particularidade mais notável da sua formulação dos quatros discursos reside na sustentação de uma lógica aparentemente frágil que ganha força ao dar conta da dimensão da verdade, do saber e do gozo: a incompletude. Ressalta que a propriedade de cada um desses esquemas “é a de deixar sua hiância” (Lacan, 1992, p. 193). Demonstra uma maneira de operar na clínica e no ensino psicanalítico na qual a lógica é não-toda alojada no discurso do mestre, mas não sem uma relação 61 de parentesco com esse discurso. Não há como ir contra correnteza do discurso do mestre, sem ao menos fazer com que algo ande, funcione, ou seja, não há como não ser situado em relação a tal discurso do qual o parletre é efeito. É preciso renunciar a busca inútil de sentido, renunciar à questão das origens para estruturar corretamente um saber (Lacan, 1992). A renúncia à questão das origens permite aos seres que necessitam explicar tudo darem lugar a várias outras questões que ninguém sabia ou podia articular. O aparato algébrico lacaniano cria a possibilidade de operar com tais enunciados, de modo que se possa atravessá-los em uma análise. Cria a possibilidade de esclarecer os fundamentos de uma prática que na época se tornava pura imitação de Freud ou caía no intuitivismo: “é uma tentativa de instaurar o que necessitava para manipular decentemente uma noção, encorajando os sujeitos a confiarem nela e com ela operarem” (Lacan, 1992, p. 188). Não há como escapar da determinação que tais discursos fazem seus agentes sofrerem, mas pode-se mudar de um discurso a outro. Para que essa saída seja possível, o projeto freudiano permitiu àqueles que passam por uma análise dizer tudo que vem a sua mente, sem a preocupação de parecer louco ou absurdo, dando oportunidade ao tropeço e ao acaso surpreender tais agentes. Tal formulação lacaniana permite que ele se questione sobre o que a teoria dos discursos poderia resultar ao psicanalista, posto que se trata de uma profissão impossível. Sua resposta consiste em sustentar que o impossível é o ser do analista, não sua função que é exercida todos os dias (Lacan, 1992). Saber operar como um objeto que ao mesmo tempo é produzido pelo discurso e resta ao sistema do enunciado é uma tarefa árdua se não há o aparelho de discurso criado por Lacan para sustentar tal operação. Lacan (1992) consegue 62 realizar tal aparelho para que os analistas possam como artesões não seguir sempre a ordem do discurso do mestre, que consigam se sacar da determinação do discurso do inconsciente. Tal operação necessita de quantas ferramentas for possível ao analista colecionar. Se no início com o Esquema Óptico, este aparelho servia ao pensamento, portanto limitado ao inconsciente, uma máquina de pensar, esses novos aparelhinhos servem ao impensável, que o próprio discurso do inconsciente produz, e à possibilidade de posicionamento do sujeito em outra determinação. Não é uma escapada da delimitação do discurso, pois todos são parentes do discurso do mestre. Por outro lado, tal parentesco serve ao esclarecimento dos discursos da dominação (o discurso do mestre e o discurso do universitário) pelos discursos contra-intuitivos da histérica e do analista. Mais do que isso, permite ao parletre movimentar-se em relação aos discursos, sem que sua paralização o faça sofrer demais. É no momento de impasse que se coloca em xeque o discurso do mestre, seu funcionamento não é tão eficaz como o parletre acredita. O discurso do mestre é o discurso do inconsciente para dar conta do que resta como não assimilável pelos significantes. O que insiste em não se inscrever na vida daqueles que sofrem por habitar a linguagem. A fórmula do discurso inscreve esse real com uma pequena letra a. Trata-se, portanto, do objeto a. Tal objeto pode ser vislumbrado no momento em que Lacan (2008) se compara a Marx, situando seu objeto a em paralelo com a mais-valia. O que é inaugural no discurso de Marx é a função da mais-valia, do mesmo modo, o que é inaugural no discurso de Lacan é a função do objeto a. Parafraseando Lacan (2008) quando cita Marx, o importante é o que Lacan designa e o quer dizer seu procedimento: “o que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e 63 que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa essência do discurso analítico” (Lacan, 2008, p. 17). Marx sem ser analista conseguiu extrair do discurso do mercado (senhor) algo que não era contabilizado, que restava desse discurso, e que fazia a roda girar: mais-valia. Fazia-se mercado de trabalho, mercado de mais-valia e isso não era contabilizado teoricamente, do mesmo modo, fazia-se mercado de mais-de-gozar, o próprio mal-estar na civilização e ninguém possuía uma técnica para tratá-lo, ele nem mesmo era nomeado. No mercado de gozo, o analista extrai a função da maisvalia para que seu próprio discurso funcione, para dar conta de seu procedimento: “essa função aparece em decorrência do discurso. Ela demonstra, na renúncia ao gozo, um efeito do próprio discurso” (p. 17). Freud faz o mesmo com o sintoma, com o mais-de-gozar que não é contabilizado no discurso do senhor (inconsciente) que determina todos os seres falantes. Aquilo que resta e pode ser objeto, objeto de um discurso, o qual o analista pode se servir para fazer operar, para fazer semblante desse objeto. No treino da análise, a experiência da análise permite um traquejo, um saber-fazer com essa renúncia de gozo que o discurso promove. Um inventar-se com a falha, com aquilo que é sustentado como mal-estar. Lacan (1968-69/2008) no último seminário na École Normale Supérieure, do qual foi evacuado pelo conselho dessa universidade com a justificativa de um ensino “mundano, incompreensível para alguém de constituição normal e não científico” (p. 408), descreve sua contribuição para a psicanálise centrada na formação, e explica que esta se fundamenta em um discurso sem palavras. Sua preocupação com esse seminário é “definir o que acontece com o discurso chamado discurso psicanalítico” (p. 11). 64 Desse modo, defende que não há universo do discurso, não há o ponto em que ele se fecha em si mesmo, pelo contrário. O que demonstra o quão fracassado pode ser um discurso que se pretenda completo, mais ainda, o analista possui a condição necessária para mostrar a falha no discurso que pretende cingir um universo. Inclusive quando seu discurso é rotulado de estruturalista, Lacan não foge dessa nomeação, ao invés disso, habita nesse chamado discurso estruturalista e diz que ele não está tão mal quanto os outros autores que ganharam a mesma alcunha. Passa a retirar as consequências do estruturalismo para o que importa em sua posição frente à psicanálise: o estruturalismo é um discurso sério, o que possibilita afirmar uma seriedade também à psicanálise. Discurso sério este da psicanálise, cuja entrada implica que não há nenhuma harmonia admissível, defende Lacan (2008). Qualquer discurso que seja seguro de si, ou seja, a ciência (episteme), não dá conta de um discurso sem palavras cuja “regra de pensamento que tem que se assegurar do não-pensamento como aquilo que pode ser sua causa” (p.13) é a confrontação primordial daqueles que manejam a ideia de inconsciente. O que autoriza a interrogação de qual ciência para a psicanálise, tão repetida por Lacan. A ideia de inconsciente abre uma nova possibilidade de discurso que não existia; mais do que isso, permite o realce de outro discurso na contramão da civilização: É somente na medida do fora-de-sentido dos ditos – e não do sentido, como se costuma imaginar e como supõe toda a fenomenologia – que existo como pensamento. Meu pensamento não é regulável a meu bel-prazer, acrescentamos ou não o infelizmente. Ele é regulado. Em meu ato, não almejo exprimi-lo, mas causá-lo. Porém não 65 se trata do ato, e sim do discurso. No discurso, não tenho que seguir sua regra, e sim que encontrar sua causa. No entre-senso – entendam isso, por mais obsceno que possam imaginá-lo – está o ser do pensamento. (Lacan, 1968-69/2008, p. 13). Como encontrar a causa do discurso do inconsciente a partir de um discurso seguro de si? Esse é um questionamento que confronta a própria estrutura da ciência, não se trata de afirmar se a psicanálise é científica ou não, mas formular qual ciência para psicanálise. Uma ciência que não seja um discurso seguro de si, mas que considere a sério o saber como causa, no caso específico da psicanálise, do saber inconsciente como causa. Essa seriedade é adquirida pelos esquemas lacanianos que dão conta do movimento desse discurso no mundo, melhor dizendo, comportam um manejo com a causa do discurso, a função do discurso. Para esclarecer o funcionamento do discurso, Lacan (1968-69/2008) sustenta que “o que é causa, ao passar pelo meu pensamento, deixa passar aquilo que existiu, pura e simplesmente, como ser” (p. 13). Em outras palavras, quando se enuncia um evento do pensamento ele traz embutido certo número de significações efeito dos significantes, cada significação traz um fora-de-sentido como causa. Ele exemplifica: “ao chove [il pleut], com efeito, vocês podem dar seguimento com chovem verdades primordiais, há um excesso abusivo” (p. 13), ou seja, cada evento de pensamento traz um ser de um pensamento anterior, ele é o sujeito do chove, mas também do chovem verdades primordiais... O pensamento é regulado por essa estrutura inconsciente que o sujeito não se dá conta, e que cuja causa é desde sempre perdida. Parafraseando Lacan (2008), é disso que a psicanálise é a consideração a sério. Ela é a consideração a sério do saber inconsciente como causa, causa no pensamento. É por esse motivo que a “essência da teoria psicanalítica é um 66 discurso sem fala” (Lacan, 2008, p. 14), por ela se centrar na função desse discurso, como uma artesã que molda a cada vez seu pote vazio, mais preocupada com esse vazio que é causa do pote, que não se sabe se está dentro ou fora, preocupada com o lugar que a estrutura do pote ocupa no vazio. Ao se defrontar com o exemplo do pote de mostarda, Lacan (2008) salienta que o pote furado atesta ao longo das eras todo o estado de uma civilização; “civilizações inteiras passaram a ser representadas para nós por esses potinhos” (p. 16). A história de certa civilização passa a ser contada por esse pote vazio, por um significante que passa a representar um sujeito para outro significante: é justo por estar vazio que ele assume seu valor de pote de mostarda. Por se escrever sobre ele a palavra mostarda. Mas mostarda [moutarde] que dizer que muito lhe tarda [moult lui tarde], a esse pote, alcançar sua vida eterna de pote, que começa no momento em que ele é furado (p. 15). O primeiro significante só adquire seu valor quando passa a representar um sujeito para outro significante, antes disso ele não é significante. É essa a estrutura do discurso que a psicanálise pode levar a sério, é por ela que uma busca pelos outros saberes se justifica. Tal qual a música e arquitetura, que produzem a relação incompatível do número harmônico com o tempo e espaço, citadas por Lacan (2008), artes supremas de maneira técnica, a psicanálise evoca uma supremacia do discurso cuja técnica de acesso é única: falar o que vier a cabeça, pois se sabe que qualquer evento de pensamento é regulado por uma causa, ou seja, sua única regra é a associação livre. Tal qual o número harmônico é “apenas uma peneira que não retém nem esse tempo nem esse espaço” (p. 14), o uso da técnica da associação livre ou até mesmo a hipótese do inconsciente não retém o tempo ou espaço do 67 sujeito, mas admitem sustentar uma prática séria contra o mal-estar que desafia cada um em seu infinito particular. 2.2.3 – A topologia: o nó borromeano. A manipulação dos nós a princípio parece algo complexo, mas se se deixa ser um pouco tolo, como recomenda Lacan (1974), o lúdico aparece. Conceituações consideradas extremamente difíceis tornam-se realizáveis pelo simples enlaçamento de um nó. A topologia permite um contra-senso, permite que o pensamento não siga a forma linear que está acostumado e seja pego de surpresa. O discurso sobre a topologia lacaniana traz a seriedade como marca, mas a proposta lacaniana exige que a marca obsessiva seja deixada de lado. Lacan atinge a utilização do nó borremeano pelas desvantagens das figurações imajadas: “quando se traz à baila o imaginário, têm-se todas as chances de se atolar” (Lacan, 1974, p.3). O imaginário cola o ser humano à consistência de sua própria imagem, tudo o que o humano pensa tem uma relação intrínseca com sua própria imagem, há um dentro e fora do corpo: Há algo que faz com que o ser falante se mostre à debilidade mental. E isto resulta tão somente da noção de Imaginário, naquilo em que o ponto de partida deste é a referência ao corpo e ao fato de que sua representação, digo, tudo aquilo que por ele se representa, nada mais ser que o reflexo de seu organismo (Lacan, 1974, p. 4). Se “o Real é o que é estritamente impensável” (Lacan, 1974, p. 3), a feitura dos nós possibilita o alcance da realidade desse impensável. Ele surge apesar de ser impossível, nesse mesmo instante ele deixa de ser real e passa a categoria de imaginário. Essa “brincadeira” faz o analista está minimamente avisado do que pode 68 ocorrer como real na clínica, e que suas intervenções têm decorrências impensáveis para ele e para o analisante. De certa forma, os nós reduzem o sentido imaginário que sempre os humanos dão as coisas do mundo, permite a manipulação do impensável. Ou seja, que há algo que escapa ao imaginário, e a possibilidade de dizê-lo, que não faz parte da incessante rede de significantes como a cola do imaginário quer que pareça: na medida em que o Inconsciente se sustenta nesta alguma coisa que é por mim definida, estruturada como o Simbólico, é do equívoco fundamental para com esta alguma coisa, que se trata, sob o termo do Simbólico com que sempre vocês operam” (Lacan, 1974, p. 4). Apenas pelo simbólico há a possibilidade de se operar na clínica, mas sempre ao seu tenso limite, de modo que o que simbólico não cansa de aglutinar, como fazendo parte de sua rede de funcionamento um objeto, mas que deve emergir como o objeto que escapa, e que é real. Enlaçar três registros do psiquismo humano com um nó, já é em si algo impensável. Quando se inicia o processo de compreensão do nó borromeano por meio da busca obsessiva pelo saber, o objetivo principal pelo qual o nó foi proposto é perdido. Muitos na universidade creditam uma dificuldade sem tamanho ao manejo e, principalmente, à compreensão do nó borromeano. Lacan (1974) não quer saber do processo de compreensão; é em reserva da compreensão que se maneja o nó de forma tola, se surpreende com os modos em que os barbantes podem se enlaçar borromeamente ou não. Esse exercício é o bastante para que os analistas estejam atentos ao que realmente importa em sua formação e análise. Não é de qualquer forma que se enlaça o parletre, há diversas maneiras de se sustentar um sintoma, nenhuma em si é mais eficaz que a outra. 69 Quanto aos outros objetos topológicos, sua função é a mesma do nó: um exercício para o que está no limite do pensamento humano, que sempre recorre ao mesmo sentido. São objetos inimaginarizáveis. Em um dos mais simples, que pode ser feito com uma folha de papel e cola, a banda de Moebius, não há um dentro e um fora8, sua superfície é contínua. Margem para se suspeitar dos pensamentos que seguem uma lógica linear; as infinitas possibilidades de modos em que o sintoma pode se inscrever. A forma obsessiva de compreensão desses objetos leva alguns autores a procurar as limitações de Lacan. Tais autores esquecem que ele não é um matemático, seu uso poético da topologia tem um propósito simples e específico: formar analistas. Em seus seminários, ele remete suas incursões aos que entendem um mínimo de lógica matemática, como ele próprio. Profere que basta isso para eles se encontrarem no lugar em que ele está. Pode-se apenas acusá-lo de acreditar que ele está se gabando de ser o único a se situar na lógica em que Freud legou como herança. Possivelmente, há aqueles que conseguem, em seus seminários, produzir um saber que pode até mesmo antecipar o de Lacan, por não possuírem a ânsia pelo saber do pensamento obsessivo. Ideia sustentada pelo exemplo claro de Sabina Spielrein com Freud: ela antecipou Freud em suas formulações sobre a pulsão de morte somente com a leitura dos textos dele e sua própria análise. Quando Lacan (2008) sustenta mais de uma vez que os jovens têm uma abertura/inclinação maior à peste da psicanálise ou quando Lacan (2003d) escreve sobre a antecipação de Marguerite Duras, que sem ele escreve sobre a matéria que 8 Figuração do externo mais íntimo que o neologismo lacaniano êxtimo representa. 70 a psicanálise trata, trata-se de um uso poético da lógica matemática, em que a antecipação vem pela surpresa. De alguma forma, supõe-se que, pela posição de analisante, Lacan faz um uso tolo da topologia, por não se ater aos propósitos matemáticos em que tal matéria foi produzida. Ele poeticamente constrói uma imagem que barra as próprias desvantagens do imaginário. O nó é imaginário, sustenta Lacan (1974), mas seu uso é real, esbarra no impossível de se pensar, mas só pode ser recuperado pelo simbólico. Com esses mecanismos de não fazer pensar, contraponto à máquina de pensar (Esquema Óptico), ele barra a deficiência mental humana de produzir objetos inumanos e pensamentos à própria imagem. 2.3 – Fim da psicanálise: o sintoma de formar analistas. Formar analistas é o sintoma efeito do discurso do mestre que emergia na época da entrada de Lacan no campo da psicanálise. Como dito anteriormente, os sucessores de Freud estavam convictos que a formação dos analistas apenas poderia ser empreendida a partir de regras rígidas para que a pureza da psicanálise não se perdesse. Se Lacan (2005, 2009) defende que a psicanálise é sintoma e como qualquer sintoma pode se extinguir, como sustentar tal sintoma na civilização a partir de regras rígidas? Para o seu bom funcionamento um sintoma precisa ser eficaz contra a angústia, índice de que algo está além do que os sujeitos podem suportar: não haveria discurso analítico nem revelação da função do objeto a, se o próprio analista não fosse o efeito, ou, eu diria mais, o sintoma que resulta de uma certa incidência na história, que implica a transformação da 71 relação do saber, como determinante para a posição do sujeito, com o fundo enigmático do gozo. Em outras palavras, a psicanálise só aparece como sintoma na medida em que já está presente uma guinada do saber na história – não digo na história do saber –, ou da incidência do saber na história, que concentrou, por assim dizer, a função definida pelo objeto a, a fim de no-la oferecer, de colocá-la ao nosso alcance (Lacan, 2008, p. 45). A função do objeto é dada por Freud, mas sua formulação só é possível com Lacan. Este último trabalha em seu ensino para fazer sentir por diversos lugares qual é a função deste objeto para o psiquismo humano. A posição lacaniana restabelece a suspeita que tinha sido perdida no meio analítico. Ele considera a psicanálise como sintoma, e como tal está submetido a um fim. Até quando durará a psicanálise? A reposta lacaniana é que haverá psicanálise até quando houver analista. Se ele existe há a psicanálise, por isso seu ensino está comprometido com a formação. O analista é aquele que consegue fazer semblante desse objeto que resta em qualquer discurso, causa de desejo e mais-de-gozar ao mesmo tempo. Portanto, não poderiam ser diferentes as especulações lacanianas em sua posição de suspeita. A denúncia é marca do seu ensino, pois sua posição de analisante o faz apontar o furo no universal. O lugar de extimidade efêmera que a psicanálise encontra como morada na civilização se deve ao seu caráter de sintoma. Em resposta a essa efemeridade, Lacan cria utensílios que ao serem manipulados esclarecem a operação analítica de tratar o mal-estar na civilização. Se o inconsciente é o que responde pelo sintoma como sustenta Lacan (1974), e ele pode ser responsável pela redução do sintoma, pode-se supor a operação lacaniana como um saber-fazer com o inconsciente, e 72 que tal modo de operar pode ser transmitido pelos analistas nas análises que acompanham e, essencialmente, na sua própria análise. 2.4 – Vertigem universitária versus modos de subversão: da poesia à estrutura e vice-versa. No discurso universitário é patente a crença de que recorrendo aos mestres é possível formar um autor, a produção de um sujeito pensante. Fica-se embaraçado com a impotência de produzir um sujeito que possa dizer algo em nome próprio, como se o sujeito pudesse decidir o significante que o determina. Porém, entre a mensagem que é enviada de um interlocutor ao outro, o que se estabelece é um terceiro que não se sabe o seu lugar, que é exatamente onde não se pensa. O sujeito barrado emerge dessa configuração do discurso universitário, embaraçado com a impotência de, pelo saber, dar conta da causa de seu desejo, dar conta do objeto e suas diversas faces, mesmo que seja a de objeto de estudo. O modo constituído por Lacan (1985) para esclarecer o discurso universitário é pelo “progresso” no discurso do analista. Lugar onde a produção de S1 é profícua, mas que tende ao esvaziamento do saber. Para que este último possa sustentar no lugar de semi-dizer um semblante de analista. O discurso do analista esclarece o discurso do universitário, pois ressalta a impossibilidade de se obter o lugar de senhor pelo saber. O que não quer dizer que o ensino da psicanálise não possua a marca da seriedade. Lacan (2008) situa tal seriedade na estrutura. Seus modos de subversão estão submetidos a tal estrutura, na época, a estrutura do discurso. Ele se interroga sobre o discurso que convém ao campo da psicanálise, no qual não há harmonia 73 admissível, não para seguir a regra do discurso, mas para encontrar sua causa. A seriedade está no seu ensino rigoroso para dar conta da função do discurso: Que fazemos na análise senão instaurar, através da regra, um discurso? Esse discurso é tal que o sujeito suspende o quê nele? Exatamente sua função de sujeito. O sujeito fica dispensado de sustentar seu discurso como um eu digo (Lacan, 2008, p. 19). É por meio dessa seriedade de interrogar a função do discurso que Lacan (1992) se pergunta o porquê dos alunos em Vincennes não se tornarem analistas. Sua resposta inicial é que eles se aliam ao discurso que exige a presença de um mestre. Por esse caminho, eles conseguirão o que querem, mas não o que almejam como psicanalistas, eles permanecerão em uma busca incessante: “Vai continua. Não pára. Continua a saber sempre mais” (Lacan, 1992, p. 98). Seu mal-estar, de acordo com Lacan (1992) é que eles precisam constituir o sujeito da ciência com sua própria pele. É nesse sentido que a produção não tem relação alguma com a verdade do discurso: no discurso universitário, esse primeiro termo, aquele que aqui se articula no termo S2, e que está na posição de uma pretensão insensata, de ter como produção um ser pensante, um sujeito. Como sujeito, em sua produção, de maneira alguma poderia se perceber por um só instante como senhor do saber (Lacan, 1992, p. 166). Os modos de subversão que trazem um deslocamento colocam em xeque os outros discursos, e fazem aparecer o discurso do analista nessa passagem. Esse movimento permite que os alunos recuperem algo da sua própria análise, apesar de estarem entre as paredes da universidade. Se não há poesia, não há movimento, se não há lógica matemática que convoca a seriedade da estrutura não há formulação 74 desse movimento e os alunos se perdem em uma eterna fruição mística em busca de ser o senhor do saber. 75 CAPÍTULO 3 René Descartes edipiano: aluno ou analisante? Meu propósito nunca foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos e construir num terreno que é todo meu. Se minha obra me agradou bastante e vos mostro aqui o modelo, nem por isso quero aconselhar que a imitem (Descartes 1637/2008, p. 51). 76 O intuito desse capítulo é a confecção de uma narrativa sobre o personagem René Descartes como recurso ficcional alegórico do lugar do aluno no universo acadêmico, sobre o sujeito produzido pela universidade. Essa ideia surgiu a partir da leitura do artigo de Anna Carolina Lo Bianco (2006b) no livro Freud não explica: a psicanálise nas universidades. Nesse artigo, ela enfatiza a consideração de Lacan no Seminário 17 sobre o texto de Freud “Moisés e a religião monoteísta” ser o cúmulo dos cúmulos, do qual Lacan extrai não uma realidade embasada em fatos históricos, mas uma operação freudiana da história que instaura um real. Mais que isso, Lacan pôde falar do enigma que o trauma sustenta. Em outras palavras, o que importa a Lacan é que Freud pôde extrair consequências do mito que ele criou ao considerar Moisés um egípcio. Da mesma forma, pretende-se extrair consequências da história-fábula cartesiana como algo que é uma herança não comunicada, mas herdada filogeneticamente diria Freud, herança real diria Lacan aos alunos da universidade que precisam lidar com o saber de forma a constitui-lo como verdadeiro, percurso que se iguala ao de Édipo. Tal como Descartes, o aluno na universidade busca saber a verdade, pelo saber constituir a verdade, mas tal processo edipiano leva ao pior. É o que sustenta Lo Bianco (2006b) ao avançar junto com Lacan quando se refere ao mito de Édipo. Ela sustenta que Lacan mostra como “Édipo não pode tomar lugar em uma cadeia de transmissão: não se torna rei pela via da sucessão, mas por uma escolha – escolha orientada pelo saber” (p.25). A resposta ao enigma da Esfinge que Édipo confabula é uma resposta como outra qualquer, mas é escolhida como alvo certeiro, um saber que orienta a escolha por ser rei. Lacan (1992) rebate em tom cômico que Édipo poderia ter respondido 77 que são os quatro discursos de Lacan, sustentando a questão da Esfinge como um enigma. Lo Bianco (2006b) remonta a outra passagem de Lacan (1992), na qual ele afirma ser “indispensável para a vida que alguma coisa irredutível não saiba” (p. 116), para sustentar que Édipo ao não reconhecer isso, “entrega-se à busca do saber e, com isso, crê ser dono de seu destino” (Lo Bianco, 2006b, p. 25). Todos sabem o que ocorre em seu trágico destino, ao não sustentar a castração como enigma, Édipo faz a mesma surgir no real: “se Édipo (...) acaba tão mal (...) é porque ele quis absolutamente saber a verdade” (Lacan, 1969-70/1992, p. 109). Que relação Descartes tem com essa proposição que é remontada aqui? A princípio nada, por isso institui-se algo como um “romance histórico” à la Freud, com o personagem supracitado. Descartes é uma alegoria edipiana para extrair a posição conflituosa do aluno universitário que tem de sustentar a verdade pelo saber. Esse termo alegoria, além de ser uma forma de composição literária é um estilo de leitura: “a leitura de um texto é feita sabendo-se que, além do sentido imediato, há um outro a que ele se refere” (Azevedo, 2001, p. 62). Considerar Descartes uma alegoria diz respeito tanto à composição literária quanto aos sentidos, às margens, que os leitores poderão dar a esse arranjo. Não se pode deixar de relembrar Lacan (1992) quando diz: “o que advém do saber no lugar da verdade no discurso do analista (...) é o mito” (p.102). De modo divergente em relação à posição edipiana de saber-se a verdade. Talvez, a partir do mito, os alunos universitários que desde o início já precisam lidar com o conflito de saber a verdade, possam construir uma saída para esse enigma herdado. Em seu célebre Discurso do método, Descartes (1637/2008) nomeia tal obra como uma “história-fábula”. Antecipa que não se trata de que os outros devam 78 seguir seu método ou coisa que o valha, mas mostrar nesse discurso por quais caminhos seguiu. Nas suas palavras: “apenas mostrar de que maneira procurei conduzir a minha [razão]” (Descartes, 1637/2008, p. 39). Descartes mostra como o caminho da universidade o conduziu a descobrir a ignorância; mais que isso, o quão pouco se sustenta o seu saber. Tende para o lado da desconfiança e não para o da presunção, ao escolher um caminho marginal à universidade. Não porque fosse mais ignorante que os doutos, mas porque desconfiava do saber ali produzido. Acreditava que a universidade “não ensinava propriamente a verdade das coisas, mas se contentava com a repetição dos ensinamentos antigos” (Rosenfield, 2008, p. 5). A escolha de Descartes como alegoria é justificada por seu primeiro posicionamento frente à universidade de desacreditar do saber ali produzido e a opção de um percurso marginal à universidade. Entretanto, alguns anos depois do seu Discurso do método, ele escreve um livro dedicado aos senhores da universidade de Sorbonne e aos teólogos, a saber, As meditações. Posição conflituosa que faz lembrar os alunos que não sabem se buscam sua formação em psicanálise dentro ou fora da universidade. No Discurso do método, a proposta de Descartes era que todos tivessem acesso as suas ideias, que qualquer um pudesse seguir o método que ele propunha, devido a isso, ele escreve o texto em francês com o objetivo de alcançar um amplo público ao invés do latim, o qual era utilizado pelos pensadores da época: E, se escrevo em francês, que é a língua de meu país, e não em latim, que é a de meus preceptores, é porque espero que os que se servem apenas de sua pura razão natural julgarão melhor minhas opiniões que os que creem apenas nos livros antigos (Descartes 1637/2008, p. 117). 79 Em contrapartida, as Meditações são escritas em latim com o intuito de validação pelos catedráticos da universidade e pelos teólogos, seu propósito é fazer um pequeno tratado de metafísica para os teólogos e à universidade (senhores de Sorbonne). Mas sua distribuição apenas foi feita aos catedráticos de Sorbonne. Portanto, trata-se de um texto direcionado à universidade. Tal texto contou com o auxílio de alguns contemporâneos de Descartes que fizeram questões, objeções e confrontações as ideias propostas, portanto, seu conteúdo já traz embutidas as soluções que Descartes construiu para tais questionamentos. Texto escrito entre 1639 e 1640, no qual seu colega Mersenne recolhe objeções junto aos filósofos e teólogos: responderei às objeções de alguns homens excelentes pelo engenho e doutrina aos quais estas Meditações foram enviadas para serem examinadas antes de mandadas a prensa. Com efeito, as coisas objetadas foram tantas e tão variadas que eu ousaria esperar que com facilidade não virá à mente de outros seja o que for, pelo menos de importância, que não foi tocado por eles (Descartes, 2005, p. 16). O primeiro texto mais pessoal contem a elaboração do método cartesiano e no segundo texto a defesa e a divulgação desse método. Pode-se pensar que Descartes produzia um conflito, enquanto seu Discurso operava uma marginalidade em relação à universidade, as Meditações exigiam uma aprovação dos catedráticos. No entanto, o conteúdo dos dois textos não difere em sua totalidade, apesar de estilos díspares. Com exceção de que, nas Meditações, suas ideias possuem o desígnio de criar um “novo sistema de saber para todo o mundo cristianizado” (Santiago, 2005, p. X), o que parece se aproximar de certo convencimento de Descartes para com os outros e com ele próprio. 80 Quem foi Descartes? Ele foi a figura a partir da qual a ciência pôde fundamentar seus alicerces. Obviamente outros personagens constituíram esses fundamentos, mas Descartes é emblemático. Seu percurso conferiu um método para a nova ciência que dali surgia. A partir de suas meditações formulou um discurso que esclareceu um método indubitável para a ciência. Em sua busca pela verdade procurava “rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se restaria, depois disso, alguma coisa em [sua] crença que fosse inteiramente indubitável” (Descartes 1637/2008, p. 69). Alguns pontos se evidenciam surgidos do recorte desta tese: Descartes “escolhe” um caminho marginal à universidade; ele não acreditava que o saber ali produzido pudesse ser confiável; suas meditações constituem um lugar para o sujeito e o modo como a ciência pode operar para produzir um conhecimento com princípios certos e delimitados; Deus como garantia da existência desse saber verdadeiro, que não engana, para sustentar todas as suas conclusões; etc. Mais uma vez, o objetivo deste capítulo não é recuperar todo percurso cartesiano, mas construir um personagem ficcional, uma alegoria para os confrontos que um aluno que se interessa pela psicanálise tem que se debruçar quando escolhe habitar a universidade, e consequentemente, produzir um saber a cada vez inédito e ao mesmo tempo válido sobre isso. René Descartes nasceu em La Haye, na província francesa de Tauraine, em 31 de março de 1596. Cursou seus estudos no colégio jesuíta La Flèche, o que, provavelmente, influenciou sua formação, pois, ao mesmo tempo em que desconfiava de todos os saberes constituídos, garantiu seu método com a prova da existência de Deus. 81 Depois da sua formação escolar e pretensa entrada na classe dos doutos, Descartes vê-se embaraçado em tantas dúvidas e erros que conclui que sua formação apenas serviu para que ele descobrisse sua ignorância (Descartes, 1637/2008). Ele acreditava que a universidade “não ensinava propriamente a verdade das coisas, mas se contentava com a repetição dos ensinamentos antigos” (Rosenfield, 2008, p. 5). Após terminar seus estudos em Direito, se juntou ao exército de Maurício de Nassau, como possibilidade de observar a experiência de vida das outras pessoas. Ele alista-se no exército com o intuito de desprender-se da experiência escolar e constituir um novo olhar sobre o mundo (Rosefield, 2008). Ao invés de aprofundar seus estudos na universidade, escolhe sair dos seus muros para investigar como os homens conhecem. Sua investigação sobre o saber o leva a acreditar que apenas pela razão pode-se chegar a um conhecimento verdadeiro, isto é, que qualquer um que siga esse preceito conseguirá a garantia de não se enganar sobre o saber: “o bom senso ... ou a razão é naturalmente igual em todos os homens” (Descartes,1637/ 2008, p. 37). Enquanto permanece como expectador das outras pessoas, foram tais ideias que surgiram em sua mente. Como conclusão do percurso de estudo dos homens, pensa: “É verdade que, enquanto apenas considerava os costumes dos outros homens, eu pouco encontrava com que me assegurar” (Descartes 1637/2008, p. 45). Resolve, portanto, se isolar para meditar sobre as experiências que observou e, realmente, elaborar um método que se inicia quando ele duvida de tudo. Essa foi a alternativa para desprender-se de seus antigos juízos, apartar-se da vida social, enclausurando-se em si mesmo, nos seus próprios estudos e meditações: “tomei um dia a resolução 82 de estudar em mim mesmo, e de empregar todas as forças do meu espírito em escolher os caminhos que devia seguir” (Descartes 1637/2008, p. 45). Ele erradica todos os erros “procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por frágeis conjeturas mas por raciocínios claros e seguros” (Descartes 1637/2008, p. 65). Desconfiando de todos os seus saberes como verdadeiros, surge a ideia de que ele pode ter certeza que duvida, no instante mesmo em que duvida ele é, o famoso: penso, logo sou. Sobre isso ele afirma: “quando quis assim pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que o pensava, fosse alguma coisa” (Descartes 1637/2008, p. 70). Penso, logo existo – primeiro princípio da filosofia cartesiana, ele não podia fingir que não existia, mesmo que tudo mais não existisse, inclusive seu corpo, ele compreendeu que ele “era uma substância cuja essência ou natureza consistem apenas em pensar” (Descartes 1637/2008, p. 70). Portanto seu Eu (espírito) é distinto do seu corpo, mas apenas no instante em que pensa. Nesse momento é que nas Meditações recorre à ideia de Deus como garantia de que seu ser de pensamento possa existir, pois não poderia subsistir sem ele um só momento, e a partir disso tudo mais que ele concebesse clara e distintamente poderia ser indubitável e verdadeiro. Tal ideia surge da indagação do lugar em que ele aprendera a pensar que há algo mais perfeito que ele: “era preciso necessariamente haver algum outro mais perfeito do qual eu dependia e do qual tivesse adquirido tudo o que possuía” (Descartes 1637/2008, p. 72). De acordo com Santiago (2005), na mesma época Galileu foi condenado pela Igreja Católica e, por esse motivo, Descartes deixara de publicar alguns livros. Será que a condenação de Galileu não fez com que Descartes desse tanta evidência a 83 existência divina? Ponto de dúvida que a leitura dos textos não esclarece, mas sua ênfase permanece inabalável, após sua descrição dos corpos inanimados, das plantas, animais e homens, ele afirma: Depois do erro dos que negam Deus, erro que penso ter refutado suficientemente acima, não há nenhum que mais afaste os espíritos fracos do caminho reto da virtude que imaginar que a alma dos animais é da mesma natureza que a nossa (Descartes 1637/2008, p. 98-99). Em resumo a prova da existência de Deus produzida pelas meditações cartesianas segue o seguinte percurso: Deus não pode ser enganador, pois não seria perfeito, e se há a ideia de perfeição e o ser humano é imperfeito é porque existe um ser perfeito que garante a sua existência como ser pensante. Após alguém seguir por esse caminho cartesiano sobre a ideia de Deus, ele sustenta que “não haverá mais ninguém que ouse duvidar da existência de Deus e da distinção real e verdadeira da alma humana com o corpo” (Descartes, 2005, p. 10). Após garantir sua existência, Descartes elabora um método para validar os saberes em suspenso por sua dúvida hiperbólica, a partir da lógica, álgebra e geometria, aproveitando-se dos preceitos que ele considera corretos dessas três disciplinas, isentos de seus defeitos. Ele segue várias ordenações para que seu método seja eficaz, com regras embasadas nessas disciplinas ele formula quatro leis simples para dar conta de seu método: algo somente será verdadeiro se passar pelo crivo da razão; simplificação das coisas complexas em partes simples; após a simplificação, remontagem do complexo, ordenamento lógico entre os elementos simples; revisão do procedimento por qualquer um. Obviamente, bebe, principalmente, na geometria para retirar esses preceitos com a prevenção de que “não se adiante nada que não tenha uma demonstração 84 certa, aqueles que não são nela inteiramente versados pecam bem mais frequentemente aprovando falsas demonstrações, para fazer crer que as entendem, que refutando as verdadeiras” (Descartes, 2005, pp. 8-9). Com isso, ele tentava responder sobre as condições de um conhecimento verdadeiro, imune ao erro. Expurgando as opiniões para obter um precipitado, a saber, a razão. Para tanto, resolve “estabelecer um método que possa ser seguido por todo e qualquer homem, independente de época, opinião, crença, costumes ou sexo” (Rosenfield, 2008, p. 18). Mesmo que suas demonstrações seguissem a geometria como exemplo, ele resolve negar até mesmo essa matéria como algo verdadeiro, apesar de manter em essência essa disciplina como fundamento do seu método: como há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo sobre as mais simples matérias de geometria, e cometem paralogismos, e por julgar que eu estava sujeito a errar como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões que antes havia tomado como demonstrações” (Descartes 1637/2008, p. 69). Enquanto se vê duvidando de tudo surge à necessidade de uma moral provisória que segue os mesmos padrões de simplicidade e simplificação que suas regras do método. Seu bem supremo é a conquista da verdade, conquista que gera um conflito, mas que ele resolve, ao demolir todo edifício teórico construído até aquele momento, com leis simples e gerais: obedecer às leis do seu país; ser firme e resoluto em suas ações; mudar seus próprios desejos do que a ordem do mundo; e empregar sua vida em cultivar a razão e avançar no conhecimento da verdade. É interessante que após a formulação do método e a constituição de um saber verdadeiro, Descartes resolve pedir aprovação à universidade sobre a matéria 85 que constitui seus livros. A mesma universidade que antes houvera recusado como local no qual um saber verdadeiro pudesse ser produzido. Possivelmente, sua esperança fosse que seu método provocasse uma reforma no alicerce do conhecimento que ele considerava caduco. Porém, nessa época, os universitários franceses não estavam preparados para sua reforma, a influência jesuíta era forte demais para permitir inovações, eles consideravam que suas ideias levariam até mesmo a loucura, o que produziu um interesse por parte dos nobres franceses interessados no rumo da filosofia (Santiago, 2005). Por outro lado, na Holanda e Alemanha, seu método logo encontrou abrigo nas universidades, talvez devido ao livro das Meditações ter sido produzido com o intuito de transmissão de suas conceituações ao público acadêmico e ter sido escrito em latim. O que facilitou a leitura desse texto por parte dos universitários holandeses e alemães. Em resumo, suas ideias produzem um conflito, um sujeito dividido entre sua existência como ser de pensamento e a verdade que sustenta seu saber. Pode-se pensar que as consequências de tal posicionamento cartesiano foram trágicas para sua vida. Um pouco antes de publicar o Discurso do Método, ele tem uma filha chamada Francine com sua empregada doméstica Hélene, que morre prematuramente aos cinco anos, exatamente no ano anterior à publicação desse famoso livro. Alguns anos depois, a pedido da Rainha Cristina da Suécia, ensina seu método e teorias na corte em Estocolmo às cinco horas da manhã. Provavelmente, por causa do frio intenso tenha adquirido pneumonia, o que ocasionou, um ano após de sua estada, sua morte. 86 Em seu caminho de dúvida hiperbólica como método, Descartes constituiu um sujeito, mas ao escolher repetir a relação de saber edípica, ejetando o sujeito do seu campo, para ir formular suas certezas amparadas por um Deus, não sustenta o enigma que seu passo fez surgir. Como Édipo, Descartes tem um trágico fim, escolhe se apartar do laço social para constituir sua busca pelo saber. Tem apenas uma filha – fruto de um caso com sua empregada, e que morre prematuramente – e termina seus dias devido ao gélido lugar no qual uma rainha, pelas madrugadas, lhe demandava o saber (Rosenfield, 2008). Dois pontos principais que podem ser extraídos dessa alegoria: a escolha de Descartes por um caminho marginal à universidade e o retorno à lógica do discurso universitário pela garantia de um Deus. Esses pontos permitem que se pense o lugar a que Descartes chegou com sua resolução de estudar em si mesmo a verdade e escolher os caminhos que deveria seguir. Até certo ponto isso se assemelha com uma análise, porém Descartes não tem fôlego nem mesmo condição: não havia à mão um dispositivo de tipo analítico para sustentar o enigma que o afligia, para sustentar sua dúvida hiperbólica. Ele demanda uma garantia para esse percurso e encontra Deus, prova a existência de Deus. Além de encontrar, é claro, pela dúvida, sua própria existência. Consegue fazer a disjunção entre saber e verdade, mas no fim aposta na certeza de que por duvidar existe. Outra margem é imaginar Descartes um aluno. Sua busca é pela verdade, mas, quando o enigma do sujeito, a castração, se impõe, ele não a sustenta. Ele passa a restituir o valor do saber pela garantia de Deus, agora como certeza. Sua lógica é aproximadamente a de que se existe a ideia de perfeição, há um ser perfeito, pois nós humanos somos imperfeitos (Descartes, 1637/2008). A certeza se 87 impõe como marca indelével da escolha de Descartes. Ele se apressa em responder ao enigma pela via do saber. Escolheu sair da universidade para buscar a verdade, mas não sustenta esse lugar, e o saber volta ao seu lugar de comando. Aquele que está na universidade não passa ileso aos conflitos vivenciados por Descartes. Mesmo seu total desconhecimento da história de Descartes não o protege, pelo contrário, a força dessa história está em ela não ser comunicada, no ponto de corte que ela personifica. Sobre isso, Silva e Lo Bianco (2009) avançam quando sustentam que o que é transmitido efetivamente não é comunicado por um saber. O que importa não é o que é comunicado, mas o real que sustenta essa comunicação ao longo dos séculos. Pela exclusão, tal qual o gozo, isso dá força ao significante para tentar cernir o real. De acordo com Lo Bianco (2006c), quando Freud constrói uma cena real sobre Moisés, ele justifica a força da tradição judaica, perseguindo as lacunas do registro histórico de Moisés, constitui uma verdade com restos e ruínas: “a partir de fragmentos, de fósseis renegados pelo discurso coerente é possível descobrir que o que foi suprido continua agindo de um outro lugar, despojado de seu contexto (Silva & Lo Bianco, 2009, p. 225). Diante disso, pode-se pensar que o mal-estar que os universitários sustentam é um legado cartesiano, por ele ter escolhido a via de saber a verdade. Silva e Lo Bianco (2009) se deparam com o achado em Freud da divisão entre uma tradição comunicada e outra herdada. A primeira é feita pela comunicação direta e linear de um saber comunicado de geração em geração. Quanto que a segunda é uma herança arcaica marcada pela ruptura, ela não é comunicada e sim transmitida; aquilo que está excluído da cadeia significante, mas 88 que é, efetivamente, o transmitido. É a partir dos efeitos, das consequências que a causa pode ser construída a posteriori. Freud opera pela incidência do corte na cadeia significante e pelo valor de causa que ele passa a personificar: a causa freudiana. Isso mais do que justifica a instalação de Descartes em uma fieira edípica. Como recompensa pela ousadia de responder ao enigma da verdade por um saber, Édipo acredita ser dono do seu destino, tornando-se rei. Do mesmo modo que Édipo, Descartes crê-se dono do seu destino quando promove uma reforma no conhecimento vigente e inaugura a ciência moderna com seu método. Ambos têm um fim trágico por seus atos. A partir de Descartes, o aluno que se insere na vida acadêmica precisa dar conta do enigma da verdade pelo saber. Ele herda essa submissão ao discurso no qual o saber está no comando. Como apropriar-se dessa herança? Submeter-se a herança é algo inescapável, mas o que se pode fazer em relação ao lugar de comando ocupado pelo saber é incidir sobre este lugar não mais com o saber, e sim com outro elemento do discurso. Esse é o trabalho proposto pela análise, pelo discurso do analista, esvaziar o lugar de comando do saber, para que ele passe de um discurso ao outro. Possivelmente, devido a isso, o exorbitante delírio lacaniano de que qualquer um interessado em transmitir um saber não escapasse de se submeter em ser psicanalista: “gostaria que as pessoas se dessem conta de que já não é possível desempenhar o papel que convém à transmissão do saber sem ser psicanalista” (Lacan, 2008, p. 158). O discurso analítico habita a civilização desde sua descoberta por Freud. É possível que um ensino, após essa descoberta, não possa passar por outro lugar para ser eficaz... 89 Quando Descartes comunica o método, deixa a lacuna de que esse método é garantido pela existência divina, por exemplo. São as lacunas que interessam a Lacan. Principalmente, a produção do sujeito que o golpe cartesiano desfere ao desconfiar de todo o saber. Isso que é descontinuidade dos saberes que eram comunicados de geração em geração sustenta o método cartesiano e lhe dá força. O que fica excluído é o sujeito produzido pelo discurso cartesiano, para que a ciência funcione, para que o método seja eficaz, todo e qualquer subjetivismo é colocado de fora. O trágico, que é a consequência da posição edípica cartesiana, é também excluído. Como o assassinato de Moisés sustenta a força da tradição judaica, o fim trágico de Descartes pela escolha de tentar desvendar a verdade pelo saber, em outras palavras dizê-la toda, é excluído do que é comunicado dessa história. Obviamente, essa é a construção proposta nessa tese, a partir dos efeitos que Descartes promulga na vida de quem passa pela universidade. Percorrendo essa via, os alunos ganham como herança comunicada, por exemplo, a defesa da monografia feita por Descartes, no qual seu próprio trabalho é o mais emblemático, pois se aparta do social para poder construí-lo; sobre isso ele afirma: ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não possuem quaisquer demonstrações, tendo se formado e crescido aos poucos com as opiniões de muitas diversas pessoas, não se acham tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente com as coisas que se apresentam (Descartes 1637/2008, p. 48-49). A partir do pensamento cartesiano também se pode pensar que de tempos em tempos a pergunta sobre os fundamentos precisa ser refeita para que não se 90 permaneça siderado a um conhecimento indubitável: “melhor do que se edificasse apenas sobre velhos fundamentos, apoiando-me em princípios que eu me deixara infundir na juventude, sem nunca ter examinado se eram verdadeiros” (Descartes 1637/2008, p. 50). O que importa aos interesses da tese é a relação cartesiana com o saber, que repete o movimento edipiano de recuperar/responder a questão da verdade pelo saber, de modo que não deixa lugar para o enigma que a verdade presentifica. A verdade antes de Descartes, de acordo com ele, era uma crença sem fundamento. Sua busca por um conhecimento indubitável relembra os passos das histéricas que desconfiam das crenças e opiniões comumente aceitas, na qual elas se colocam em lugar de exceção: com qualquer um funciona desse modo, menos comigo, mais non. Porém, ele não encontra Freud para escutar suas queixas. Seu lugar de dúvida hiperbólica de todo conhecimento que diz sobre a civilização é destituído quando ele encontra a garantia divina, e passa a construir seu método para dizer sobre a verdade. Apenas o que se apresenta clara e distintamente ao seu espírito é aceito sem nenhuma dúvida, ele passa a examinar cada parcela da vida em uma simplificação em partes simples, para só depois constituir ele próprio uma ordem aos seus conhecimentos, várias revisões sendo necessárias para que a razão impere. Todos os dias, veem-se alunos preocupados com a garantia que seu estudo diga a verdade, que pelo saber a verdade possa ser dita. Sem se dar conta que está submetido a uma herança cartesiana. Quando esse aluno se interessa pela psicanálise, as dificuldades parecem ser exponenciais, pois a verdade toma seu lugar como algo semi-dito, impossível de se 91 dizer toda, e o saber é inconsciente, um saber que não se sabe. Algo totalmente estranho aos herdeiros de Descartes. Talvez seja nesse ponto, que quando há uma outra incidência, o corte da psicanálise, descobre-se à escolha a que se está submetido, em outras palavras, sua filiação se torna um achado: “há aí uma porta que não é aberta pelo saber, mas sim por meio do trabalho que o enigma posto pelo inconsciente exige de nós” (Lo Bianco, 2006, p. 21). Não são todos que conseguem percorrer a via da psicanálise. Não que isso seja um privilégio, pelo contrário, os interessados pela psicanálise parecem ser os que menos conseguem lidar com o mal-estar na civilização, com o seu sintoma, isto é, são os neuróticos (Lacan, 2008). O bonde da psicanálise passa e dependendo da filiação daquele que está na estação, ele sobe ou não. O tempo que permanecerá nessa viagem é indeterminável a priori. A escolha que estava feita desde o início, desde sempre, só ocorrerá no fim, seja no fim da análise para os otimistas, seja no fim da vida. 92 CAPÍTULO 4 Formulações em cartel: lugar de fuga e deslize para o saber do aluno. 93 Esse é o momento de fuga da tese, momento em que a experiência com os outros é colocada em destaque. Momento de afastar-se das próprias conceituações solitárias para demonstrar o trabalho com o coletivo, sem esquecer que se trata de um trabalho com cada um. Não se trata de uma fuga desenfreada, mas um escape do discurso universitário com seus limites. Deslizar por várias posições discursivas é o resultado principal que se obteve dessa experiência. Pode-se pensar que toda tese tem essa característica, mas sua feitura na verdade está sempre sob uma tensão: a referência aos autores. Seguem-se de perto dois autores fundamentais, Freud e Lacan, porém mesmo suas contribuições estão sob o crivo de não seguir a lógica universitária, mais especificamente, apenas quando a referência serve aos propósitos de deixar aberto o campo da psicanálise para o impensável. Apenas quando vem barrar o universal, a lógica do todo, é que essas e outras referências se tornam necessárias; o que ressalta que nem tudo segue a lógica da mestria. Essa herança torna-se estrutural quando seu funcionamento se impõe, não como algo que sempre funcionou do mesmo modo, mas como algo que nunca antes houvera funcionado desse jeito, destituindo um saber que imperava como certo. Há outras tensões presentes em uma tese além da referência aos autores. O uso da primeira pessoa em uma tese, com o intuito de uma escrita subjetivada e pessoal do assunto ou fazer do autor um estudo de caso; a utilização dos operadores lacanianos sem a experiência, sem se deixar experimentar seus efeitos; a escrita do texto sob a lógica da produção de um autor; a análise dos autores como personagens do caso; etc. Tudo isso pode permanecer sob a insígnia da suspeita, 94 pois podem seguir a lógica do que sempre funcionou do mesmo modo, que segue a marcha da civilização. Propõe-se, portanto, experimentar algumas dessas tensões e discorrer sobre suas possíveis consequências, mais especificamente, situar as tensões mais atreladas à lógica feminina do não-todo, sem esquecer que não se pode querer sair da lógica universitária para se sacar efetivamente dela. Para experimentar e discutir tais tensões foram propostos um grupo nos moldes de um cartel e um grupo de estudos. O grupo nos molde de um cartel seguindo a lógica de funcionamento proposta por Lacan e o grupo de estudos seguindo seu próprio funcionamento, com regras escolhidas pelos membros. O que aqui está descrito é o resultado das discussões nesses grupos, das elucubrações sobre os grupos, dos questionamentos que cada um pôde fazer aos textos estudados, dos trabalhos que cada um fazia em seu percurso na universidade, dos acontecimentos que ocorriam na universidade no momento em que os grupos operavam, das lembranças e situações que cada um trazia sobre seu envolvimento com a pesquisa universitária com o intuito principal de formar um quadro descritivo do lugar do aluno de psicanálise no campo da universidade. O ponto nevrálgico dos fragmentos aqui descritos é a posição de quem os vivenciou. Seja como observação de uma cena ou a escuta de uma discussão produzida dentro dos grupos, o que importa é o valor de exemplo de diversas inserções ao campo universitário por aqueles interessados pela psicanálise. Portanto, tal como Descartes é uma alegoria para os alunos, os fragmentos aqui expostos são ficções para comunicar algumas possibilidades que a inserção na universidade acarreta. Principalmente, esclarece o lugar de aluno que o autor da tese pôde suportar. 95 4.1 – Cartel: funcionamento e dissolução sob a tensão da universidade. Cartel é palavra estranha à universidade; há apenas um trabalho que se pôde ter notícia dentro da universidade brasileira que se utiliza dessa ferramenta proposta por Lacan (Pessoa, 2008). Pode-se passar por uma graduação em Psicologia sem ter nenhuma referência a esse grupo, mesmo que sua referência teórica seja a psicanálise. Parece ser algo destinado somente às escolas de psicanálise, algo marginal que resiste a uma produção acadêmica. O cartel resiste: esta é uma primeira ideia que pode ser desenvolvida aqui. Mesmo dentro das escolas não é algo que se dê tranquilamente, não há uma referência a isso; pelo contrário, a insígnia da dificuldade é sempre lembrada. A principal delas é um cartel ir a termo, que ele se finalize com o trabalho de todos. Ele só terá ocorrido se essa produção se der, ou seja, não se inicia um cartel, apenas seu fim pode dar essa característica a um grupo. Porém, mesmo que essa finalização ocorra é preciso que seja transmitido o trabalho que se produziu no grupo. O que afinal ocorreu nos encontros para que uma produção fosse digna de ser transmitida? Quando se vai a um encontro de cartéis suas produções denunciam que nem sempre há um trabalho que é fruto do cartel. Pouquíssimos trabalhos conseguem ter essa marca, mas é algo que se evidencia na própria transmissão do autor cartelizante. Porém, antes de julgar se a produção é ou não digna de ter a marca da psicanálise, é necessário localizar a dificuldade própria da produção de um escrito 9. 9 Trabalho que foge ao escopo da tese. 96 No Ato de fundação de sua Escola Francesa de Psicanálise, Lacan (2003e) defende uma crítica assídua da psicanálise como tarefa primordial desta escola. Para a execução deste trabalho, ele propõe uma elaboração sustentada pelo grupo do cartel. Ao mesmo tempo em que funda sua escola, esclarece o modo de funcionamento desta pela permutação que o cartel proporciona. Nasce a proposta do cartel junto a sua escola, ou seja, a escola é o próprio cartel. Formula sua composição seguindo o mínimo de três e o máximo de cinco pessoas, sendo quatro o número ideal, mais-um “encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um” (Lacan, 2003, p. 235). Essa organização circular é o modus operandi da própria escola. Toda a organização da escola está sob a insígnia da permutação para que não se caia em uma rotina estabelecida. O cartel é tão caro à Lacan (2003e), que a adesão à escola é feita através deste grupo, com o intuito de produzir trabalhadores decididos, produzir analistas. Esse ingresso na Escola Francesa de Psicanálise se dá pela escolha mútua dos elementos do cartel. O que sustenta a ideia lacaniana de que “o ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho” (Lacan, 2003e, p. 242). O que, possivelmente, produzirá uma constante elaboração da lógica da psicanálise, crítica, uma “abertura dos fundamentos da experiência [e] ao questionamento do estilo de vida em que ela desemboca” (Lacan, 2003e, p. 244). Mesmo quando abandona sua proposta de escola, ao propor a dissolução da Escola Francesa de Psicanálise, Lacan (1980) sustenta o cartel como lugar privilegiado ao campo que ele defende. Àqueles que decidem se reunir a esse 97 campo sob a insígnia da Causa Freudiana, com o intuito de que eles se descolem dos efeitos de cola que a escola havia proporcionado, Lacan (1980) restaura o cartel aprimorando sua formalização. Em suma, o que muda em relação à proposta inicial feita no Ato de fundação é a delimitação de um tempo de duração de no máximo dois anos para que haja permutação do cartel, exposição periódica dos resultados e crises do trabalho e o sorteio dos elementos do grupo. Nem todos os cartéis seguem essas mudanças propostas por Lacan. Porém, como o grupo que se constituiu não seguiu todos esses procedimentos, nem mesmo se filiou a alguma instituição analítica, no máximo pode-se afirmar que houve uma tentativa de se amoldar a essa proposta lacaniana. 4.1.1 – Primeiro passo do cartel: encontrar os componentes do grupo e o mais-um. Nas aulas da pós-graduação era preciso “recrutar” alguns alunos que quisessem fazer parte do grupo nos moldes do cartel. Mas antes era preciso conhecê-los minimamente? Naquele momento pensou-se que sim. Em suma, acreditava-se que não era simplesmente um interesse pela psicanálise que era indispensável para fazer um cartel, era necessária uma filiação com Lacan. Nas disciplinas de psicanálise da pós-graduação havia alunos de todos os tipos de filiação. Mas uma disciplina mostrou-se ser mais interessante que as demais, devido aos alunos que se produziam ali. Havia um lugar de produção discursiva diferente das disciplinas em que o discurso que imperava era o universitário. O trabalho da professora permitia que os alunos se conhecessem, que houvesse uma troca sobre o que cada um pensava, mais que uma simples 98 apresentação dos projetos de pesquisa, a professora fomentava um lugar em que os alunos efetivamente participavam do estudo dos textos, autorizando a apresentação do tema por cada um. Não que isso não tivesse um preço. Alguns alunos não se enganchavam por esse caminho. Ficavam presos a uma leitura epistemológica ou demasiado pretensiosa de Lacan. Esquecia-se de falar sobre o que efetivamente apreenderam do texto. Uma leitura despretensiosa foi a primeira lição da professora. Não era preciso ficar preso em todos os detalhes, escansões, referências, faltas de Lacan para se obter algo eficaz para a formação. Nas outras disciplinas, os alunos permaneciam mudos frente ao conhecimento dos professores, o que gerava perguntas de falta de entendimento sobre o raciocínio do professor, não verdadeiras questões. Explica-se: O professor fazia uma leitura epistemológica de Lacan, buscando os furos na teoria, em relação ao pretenso projeto lacaniano que ele escandiu, explicação de um conceito descontextualizado da clínica, etc. A mudez era o produto mais evidente produzido por essas disciplinas, quando não uma pergunta que não levava para lugar algum, que esbarrava no mais-de-gozar do professor em responder a questão, mostrando todo o seu conhecimento sobre o assunto, e mais uma vez os alunos se perdiam no redemoinho de saberes sem sentido. Difícil conhecer alguém em um lugar no qual só se produzem sintomas (alunos astudados) ou objetos de refugo. Alunos tão automatizados no funcionamento do mestre, que saiam mudos e atordoados pelo não entendimento e dificuldades das disciplinas. No lugar em que cada um podia ser único, as aulas não queriam terminar. Mesmo depois do seu término, uma reunião ocorria para discutir os efeitos da aula e da leitura dos textos. A produção evidente das aulas girava em torno do saber produzido pela aula e leitura dos textos ou o modo como cada um podia se sacar de 99 um saber anterior e produzir algo totalmente novo. Oportunidade perfeita para que quatro se juntassem em torno da proposta de um cartel. Faltava escolher o mais-um. Além da disciplina da pós-graduação, a professora promovia um grupo de estudos sobre um seminário específico de Lacan. Do mesmo modo, a proposta não era esgotar o texto, mas produzir algo a partir da clínica e da experiência de cada um. Nesse contexto, o grupo que se formava escolheu o mais-um. Duas exigências se tornaram essenciais para a escolha do mais-um: que ele já tivesse participado de um cartel e que todos aceitassem essa escolha. Exigências formuladas, pois certamente cada um possuía exigências que ocultou do resto do grupo e outras de si mesmo. Claro que alguém interessado em questionar a teoria a partir da clínica resumia a marca em volta da qual o grupo se uniu. Convite aceito, iniciam-se as reuniões do grupo. Como as questões dos cartelizantes eram bem diferentes, a temática desse grupo tornou-se a leitura de O seminário, livro 20: mais ainda de Jacques Lacan. Na primeira reunião, o mais-um pediu que cada um falasse sobre qual seria a questão de cada um dos elementos. Tornou-se premente formalizar uma questão, pois ninguém havia esclarecido para si qual seria o trabalho proposto com o seminário. Havia temáticas que encantavam ou identificações que precisavam ser trabalhadas a partir de uma questão singular, mais próxima de uma análise do que um trabalho em um cartel. A condução do mais-um foi excelente para sanar qualquer deslocamento quanto ao lugar da questão em um cartel. O que cabia ali e o que era necessário levar para a análise. Saiu-se pensando o que é uma questão para um cartel. Quando a discussão se formalizou em uma ideia sobre a questão a ser trabalhada, todos concordaram que a pergunta trataria de algo de fundamental 100 interesse para cada um. As questões formuladas foram as seguintes: qual a ideia de gozo no seminário?; como a questão sobre o feminino é descrita no seminário?; como a lei é descrita no seminário?; o que é psicanálise e o que a distingue da ciência? Durante as reuniões do grupo, as discussões sobre o cartel giravam em torno dessas questões. Cada um trazia algo da experiência que ajudava a compor o caminho de estudos para a escrita do produto das discussões fomentadas no grupo. Mas o que interessa a esta tese é como os envolvidos com este grupo funcionavam e como a universidade entrava nas discussões, apesar do grupo não se constituir como um cartel em si. Alguns pontos foram se evidenciando enquanto o grupo trabalhava. O combinado de que os encontros só ocorreriam se todos estivessem presentes não foi produtivo. A escassez de encontros começou a incomodar alguns membros. Por outro lado, o que sustentava alguns a continuar no trabalho era esse mesmo combinado. Por diversas vezes, a justificativa de não faltar por motivos quaisquer era de que se um não fosse os demais não se encontrariam para discutir o texto. Outro ponto significativo no trabalho era a diversidade de proposições impostas ao texto pela heterogeneidade das questões propostas, mas que com simplicidade eram reconduzidas e provocadas pelo mais-um. Com sua posição eminentemente clínica, voltava-se à experiência para situar melhor a posição da qual cada um partia. Era essencial a surpresa que se produzia na sua condução por meio das proposições que cada um impunha. Isso não quer dizer que por vezes ele não assumia uma posição de mestria. Pelo contrário, sua posição mesmo quando de mestria, não permanecia imutável pelo saberes que cada um trazia. Havia uma 101 desconstrução momentânea de uma ideia anterior, que se produzia no momento mesmo em que alguém desbancava sua mestria. Não apenas as questões eram heterogêneas, mas o grupo também em relação a sua filiação à universidade. O mais-um continuava sua participação em um grupo de estudos na universidade, após sua defesa de mestrado, com intuito de ingressar no doutorado. Duas participantes do grupo estavam no momento de construção do seu projeto de mestrado e participavam do mesmo grupo e das disciplinas de pós-graduação como alunas especiais. Os dois outros cursavam um curso de pós-graduação, um no mestrado e outro no doutorado, com projetos sob o crivo da orientação lacaniana. O que cada um aproveitava dos encontros obviamente era bastante distinto, mas todos tinham como fim um trabalho na universidade. Claramente o interesse no grupo recai sobre suas questões referentes ao seu lugar na universidade. O que produziu, como conclusão, diversas questões: Quais os percalços que um trabalho na universidade traz para o aluno que exerce a psicanálise? O que pode ser feito como trabalho acadêmico com a psicanálise? O cartel é um modo eficiente de filiação para que um trabalho acadêmico possa ser produzido? 4.2 – Grupo de estudos: cada um se engancha como pode no mestre. Em contraposição ao grupo nos moldes do cartel, propôs-se um grupo de estudos em que algumas decisões preestabelecidas foram impostas aos que quisessem participar. Em primeiro lugar, o texto seria o escolhido pelo proponente 102 do grupo. O aluno da universidade que possuísse interesse em estudar esse texto, por qualquer motivo, estava apto a ingressar no grupo. O encontro semanal não dependia da presença de todos, mas de quem estivesse presente naquele horário. Mesmo que alguns perdessem algum encontro, estavam aptos a retornar quando quisessem. Portanto, as faltas seriam responsabilidade de cada um, e do interesse que este sustentava junto ao grupo e ao texto. Uma primeira decisão quanto ao funcionamento do estudo em si, era de ler o texto anteriormente e discuti-lo, mas foi trocada pela leitura anterior e leitura comentada no momento mesmo do encontro. O proponente do grupo muitas vezes foi se posicionando como aquele que dizia/sabia sobre o funcionamento. O que submetia os outros a certa mestria. Que por alguns era vista com bons olhos, mas não por todos. Os efeitos diversos que cada um pode produzir denunciam que o funcionamento do grupo desse modo tem vantagens e desvantagens em relação ao grupo nos moldes do cartel. A principal vantagem é que o grupo era assíduo, pois não dependia de todos para funcionar. Também não havia a obrigação da produção de um texto. O que não impediu que alguns produzissem textos por sua própria vontade, ao se defrontar com a dificuldade do seminário lacaniano. Efeito clínico do próprio texto, diria Porge (2009). A proposta do mestre do grupo era uma leitura despretensiosa do texto lacaniano, apontando para a própria experiência de cada um. Quase todos se aliaram a esse projeto, mas não sem prejuízos para as suas próprias conclusões. Claramente, esperavam as conclusões ou explicações do mestre para seguir em suas leituras. Algumas vezes, uma questão que colocava em xeque a posição do 103 mestre era sublinhada. O que produzia um efeito de deslocamento sobre a posição que muitas vezes era produzida. Um dos componentes sentia um mal-estar em relação à mestria. Não se alcançou uma solução final para este mal-estar, apenas por alguns momentos. O que permitia a continuidade desse componente do grupo, mas não sua inclusão de forma a não sintomatizar tanto. Falta de habilidade do proponente em não chegar a esse ponto de desconforto. O grupo continuou por mais tempo do que a proposta inicial e continua até hoje. Alguns não mais participam do grupo por diversos motivos, mas alguns que se filiaram à proposta da leitura despretensiosa continuam. 4.3 – Os lugares que os alunos ocupam em sua passagem pela universidade. Como produto dos encontros e discussões, nos grupos promovidos com alunos da universidade interessados em psicanálise de orientação lacaniana, obtiveram-se alguns fragmentos que demonstram a dificuldade da inserção da psicanálise na universidade, mas ao mesmo tempo sua (im)possível relação. A escolha de separar tais fragmentos dos grupos em que foram debatidos segue dois objetivos: a preservação do anonimato e a discussão própria que a escrita pode sustentar. Todos os fragmentos aqui expostos são ficções centradas na posição de quem escreve a tese, com o intuito de fomentar um panorama de possibilidades de inserção na universidade de um aluno interessado na psicanálise. Escrever um conto com propósitos a uma publicação é um dos modos de produção que guarda uma filiação com Freud; o que é muito utilizado nas produções acadêmicas sob a orientação desse analista até hoje. Lacan em poucas ocasiões 104 publicou casos de seus atendimentos. Sua principal justificativa para a falta de publicação era o anonimato dos analisantes. Sabe-se que os próprios retratados pelos fragmentos podem reconhecer ali suas histórias. Por esse motivo, apenas o essencial para a discussão teórica será retratado nas próximas páginas. Extrair o essencial a ser comunicado é tarefa árdua, pois a tensão entre declarar o que foi vivenciado e a preservação do anonimato possui uma fronteira tênue, que precisa ser respeitada. Saber a verdade a todo custo é herança edípica que leva ao pior. Em contrapartida, não se quer saber de nada disso, o que pode gerar paralisação na busca de saber. Qualquer pesquisa passa por tais questões; mas quando se trata de psicanálise, a operação de risco feita em relação ao saber constituído pela descoberta freudiana traz uma suplementação à dificuldade que pode ser produzida: a psicanálise coloca em evidência os mecanismos estruturais da (não) relação do homem com um saber que o move e que ele próprio desconhece. Por outro lado, não se pode esquecer o insabido que move a própria transmissão. O impensável é o motor para novos entendimentos e recolocações das questões, que podem ser fomentadas com o que aqui será descrito. Há outra limitação que é o momento em que o pesquisador se encontra em relação ao seu sintoma de não querer saber de nada disso. O que é infinitamente particular. O pesquisador constrói seu entendimento a partir do que pôde ler e ouvir, do modo como recortou o saber do outro e o fez seu próprio saber e, principalmente, o seu estilo de produção de transmissão e escrita. A todo instante embaraçado na construção de seu edifício teórico feito de cartas de baralho, que a qualquer 105 momento pode se desfazer ao sopro de uma delicada bailarina em seu passo nas pontas dos pés. Nas próximas páginas, seguem-se acontecimentos pautados na produção de um aluno embaraçado com a psicanálise e a universidade. A forma como cada um foi capaz de se situar nessa tensa relação impossível. Relação que não existe, mas que pode ex-sistir. 4.3.1 – Dividido entre a psicanálise e a academia. Em sua defesa de dissertação, Quaresma trata o texto da sua dissertação como produto duplo. Reduplica seu trabalho e produz um duplo de si mesmo. Confessa à banca o inconfessável a agencia de fomento: seus relatórios seguiam uma lógica totalmente diversa à escrita de seu texto. Enquanto que seu texto da dissertação guardava lugar para o insabido que a psicanálise pode produzir, utilizando-se de metáforas, rearranjos de sintaxe, neologismos, etc.; o texto do relatório tentava seguir uma lógica racionalista; mais do que isso, a ideia é de que a partir das referências aos autores o texto o constituiria como autor. A produção efetiva é um aluno alienado, que se consome aflito pela sua busca por um nome próprio, um referente em que ele pode ser representado como sujeito, mas que termina por objetalizá-lo. Lacan (1992) antecipa esse movimento ao situar o discurso do universitário (S2/S1 → a/$), cuja produção é um $, alijado da sua verdade de ser apenas um significante qualquer, irresoluto pela impotência de recuperar sua verdade de significante; ao invés de se deparar com a impossibilidade de que no lugar em que o 106 saber reina não há objeto que produza outra coisa senão seu próprio ser de sujeito consumido e consumível. Quaresma se rende à agência de fomento como algo a ser consumível, objeto de uma ciência que pode ser considerada como tal. Acredita-se que há outra saída que não seja a divisão sofrida por Quaresma, que outorga um duplo trabalho. Talvez algo que não possa ser transmitido por vias comumente lógicas em seu funcionamento? Acreditando ser mais livre em sua escrita, Quaresma está mais determinado por seu sintoma do que a histérica que produz um saber que pode ser transmitido ($/a → S1/S2). Quaresma se deixa levar pela sutileza lacaniana de não compreender, segue a indicação lacaniana da não-compreensão, que é um dos temas colocados por Lacan (1988) no seu seminário sobre as psicoses. Miragens da compreensão que Lacan afilia tanto ao tratamento do psicótico quanto a um texto que se pretende com o discurso firme. Esse último tópico interessa mais de perto. Lacan (1988) comenta o capítulo de Jaspers intitulado “A noção de relação de compreensão”, assegurando que a utilidade de um discurso firme é que “as incoerências logo aparecem” (p. 15). Se se alinham essas considerações com o início de seu seminário denominado R.S.I., no qual ele fala do fenômeno lacaniano, em que ele é apenas efeito para um público e que a única coisa que faz com que ele continue é que há algo que ele crê ter captado – a experiência analítica –, podemos retirar daí uma chave de leitura para seu ensino. Qual seja, se ele considera que em um discurso firme as incoerências logo se insurgem, que ao falar ao público ele é efeito deles, nada mais sensato aludir que há um propósito para as excentricidades lacanianas: seu ensino – no que ele abre ao analista o próprio discurso, que é o que o sustenta (Lacan, 1974-75). 107 No caso de Quaresma que se dividia em dois – o que escrevia a dissertação e o que escrevia o relatório –, podemos situar que essa divisão é própria do discurso universitário, aquele que tem como produção um sujeito alienado de sua verdade, de que há pelo menos um que sabe. Como elevar esse aluno ao lugar privilegiado da invenção psicanalítica sem situá-lo em uma cisão psíquica que sintomatiza? 4.3.2 – Em meio ao cientificismo exacerbado há um sujeito histérico que produz saber. Marcela é uma professora que orienta diversos alunos na pós-graduação, talvez por esse motivo, alguns estão vinculados a sua pesquisa, possuem subprojetos de seu trabalho na academia. Sua pesquisa segue à risca a crença da aplicabilidade universal dos métodos, com um semblante de empirismo que é rapidamente comprado pelas agências de fomento. Não fica evidente se ela acredita em tal semblante, mas Zênio supõe com vivacidade que há algo que o incomoda no andamento que a pesquisa pode tomar. Ele crê na possibilidade da pesquisa não servir aos propósitos psicanalíticos de abertura para algo que os saberes ditos científicos excluem, denegam, desconhecem ou simplesmente desprezam. Desde que Freud escutou as histéricas, deu lugar ao sofrimento histérico, retirou-as da nomeação de farsantes. Não se trata de um embuste o que elas vivenciavam como verdade. Dar lugar ao sujeito para que ele produza novos significantes, com o intuito de que ele possa se dizer e saber-fazer com o seu sintoma é uma direção da psicanálise. O que em um primeiro momento, a pesquisa com semblante cientificista abole. 108 Porém, em um episódio em que Marcela se coloca na posição de sujeito, em que diz que nem tudo é como a pesquisa cientificista supõe e discorre sobre algo da sua clínica e vivência pessoal, claramente toca os presentes e Zênio de outro lugar. Marcela possibilita uma produção de saber em seu aluno divergente do preconceito “psicanalítico” e abre espaço para que Zênio sublinhe tal fala em seus encontros com os sujeitos de pesquisa e com ela própria. Sabe-se que seu saber, nesse momento, barra o saber do mestre, esclarece o funcionamento desenfreado que a ciência por vezes camufla para a produção de seus objetos impotentes em satisfazer ao menos um sujeito. O que esse fragmento evidencia é que mesmo imbuída de fazer algo que a torne mestre, em alguns instantes o sujeito pode ser ratificado. Mais que isso, um aluno avisado pela psicanálise pode apontar ao mestre que para os propósitos ditos psicanalíticos, suas colocações clínicas, desde um lugar de analisante, isto é, a passagem pelos discursos, são mais importante à pesquisa do que sua cristalização nos discursos da dominação. 4.3.3 – A mimética: basta apenas que ela se encante pelos idiotas para se tornar um deles. Pode-se imitar a voz de um outro, mas nunca ter a voz idêntica a de ninguém. O timbre é algo singular que demarca cada um. Em um coro, as vozes se unem para formar a partir da polifonia uma única voz, mas a música se dá pelos silêncios, assonâncias e dissonâncias. Dar voz a cada um é mostrar cada timbre em sua própria tessitura, de modo que o timbre saia com a melhor qualidade. Um cantor 109 pode ultrapassar sua tessitura, pois sua extensão vocal é maior que sua tessitura, mas perderá a qualidade de seu timbre e, provavelmente, desafinará. Isis surpreende pelo modo com que se veste, como anda e fala, de modo quase idêntico à sua professora Berta. O que mais impressiona é a semelhança dos timbres de voz. Tal qual uma mariposa negra que passa despercebida nas florestas cobertas por fuligem, Isis crê que sua formação e lugar estão garantidos por sua imitação. Supõe-se que ela não nota que imita sua professora. Tal imitação é efeito da fascinação desmedida que captura Isis em relação à Berta. Isis sempre começa discussões intermináveis sobre os problemas epistemológicos na teoria de orientação lacaniana, mas esquece a clínica. Ao escrever um texto, o conteúdo não passa de uma colcha de retalhos com várias citações de autores sem qualquer apreensão efetiva do que ali está descrito. Nos momentos de supervisão de casos clínicos, ela permanece em uma busca incessante por atos falhos, jogos de palavras, chistes, etc. Mas não há um direcionamento para sua clínica, muito menos uma escuta do sujeito que está a sua frente. Ela não consegue escutar coisas óbvias que o analisante diz, mesmo quando apontadas pelo supervisor ou colegas de supervisão. Ela acredita estar certa, pois Berta a ensinou desse modo. Por conseguinte, os outros não possuem tanto acúmulo de saber quanto Berta. Essa alienação custa caro a Isis e, principalmente, aos seus analisantes, que permanecem como objetos de suas elucubrações teóricas. Objetos de uma teoria sistematicamente estruturada, que foi a ilusão transmitida à Isis por Berta, exatamente por esta última procurar a todo o momento os furos da teoria e tentar tamponá-los. Efeitos da busca desenfreada pelo saber que a academia outorga. 110 É preciso não imitar o discurso lacaniano; bem ao contrário, situar seu próprio estilo. Cada um tem que dar conta do que é a experiência analítica. Em uma conferência dada em 16 de junho de 1975, na abertura do V Simpósio Internacional James Joyce, Lacan (2007) imita Joyce numa tentativa de mostrar que isso não funciona: O importante para mim não é pastichar Finnegans Wake – estaremos sempre aquém dessa tarefa –, mas dizer em que medida dou a Joyce, ao formular esse título Joyce, o sintoma, nada menos do que seu nome próprio, aquele no qual ele se reconheceria na dimensão da nomeação (p. 158). Não há como fazer um pastiche sem cair no ridículo, apenas se você for um gênio, desse lugar a imitação se transforma em outra coisa. Não mais uma “imitação servil de obra literária ou artística” que é um dos significados de pastiche, mas uma “ópera composta de fragmentos de outras”, um de seus outros significados (Houaiss, 2001). A composição de uma obra pela imitação de diversas outras se torna uma invenção singular, é preciso ser um gênio para isso. Talvez a proposta de Lacan não seja a de ser um gênio, nem mesmo imitar o seu estilo, mas apreender que na própria experiência analítica há uma invenção. É preciso passar por essa experiência (análise pessoal e análise de outros), elaborar essa experiência (perlaboração e estudo teórico), transmitir essa experiência (supervisão e ensino). Isis jaz em uma posição que pode até mesmo situá-la em um bom lugar para a universidade, mas sua formação analítica permanece estagnada à espera de um pontapé que a faça tropeçar desse lugar. Ela segue no discurso da dominação sem nenhum incômodo para seu ideal como professora da universidade. 111 4.3.4 – Quando o mestre é zen, o pupilo encontra seu próprio caminho. Xavier está começando seus atendimentos em psicanálise, há algum tempo ele estuda essa disciplina e faz sua análise pessoal. Ele não possui nenhuma experiência anterior de atendimento, mas seu primeiro caso se desdobra de forma a avançar em direção a uma análise. Os questionamentos do analisante já estão inseridos no discurso histérico. Importante ressaltar que esse mesmo paciente houvera passado por um atendimento de um ano, que se encontrava emperrado. O que aconteceu de diferente em relação aos dois atendimentos? Em tese o primeiro aluno possuía mais experiência do que Xavier, pois já estava em seu segundo ano de atendimento e cursava o final do curso de psicologia. A resposta mais óbvia é que o ensino que Xavier sofreu foi diferente ao da aluna mimética. Houve uma transmissão nesse ensino, que ele sustentou com seus próprios méritos e caminhos. Em seu primeiro seminário, Lacan (1986) subverte a questão do ensino propondo que: O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a técnica zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la (Lacan, 1986, p. 9). Obviamente, nessa passagem, Lacan aproxima o analista do mestre zen, mas principalmente àquele preocupado com o ensino. Sua preocupação desde o princípio era formar analistas, buscando o melhor uso do seu próprio saber para 112 fazer consistir um psicanalista. Por meio do koan (enigma), o mestre zen permite ao aluno sua própria formação. A hipótese submetida aqui é que Laura tornou-se mestre zen para Xavier. Ela não respondia as questões de uma forma direta, esperava que Xavier as encontrasse na leitura dos textos ou na sua própria análise. Em supervisões dos seus casos clínicos, suas questões surgiam enigmáticas e re-situavam as próprias questões de Xavier. Devido aos horários desencontrados, a mimética Isis não pôde mais continuar atendendo um caso de um garotinho com problemas em relação à disciplina. O caso não andava, as “magníficas” interpretações de Isis serviam apenas para situar ela própria em um lugar sublime e relegar o garotinho a um lugar de objeto de suas “fantásticas” elucubrações teóricas. Em poucas sessões com Xavier, o garotinho já conseguia produzir novos significantes que o re-situavam em relação a sua história. Inevitável pensar na comparação entre os dois atendimentos. Mas, sua comparação é colocada com reservas, apenas como hipótese pelos efeitos vislumbrados na cena. Em alguns momentos, Xavier ocupou o lugar de objeto (multiuso) das elucubrações do garotinho, permitindo a produção de novos significantes e a construção de um novo saber (um novo amor). 4.3.5 – O aluno analista e a professora analisante Considera-se que alguns professores em seu ensino universitário possibilitam um verdadeiro trabalho de pesquisa. Para constituir um ponto de fuga do que é mais óbvio, ou seja, que o aluno precisa responder a duas exigências, uma da 113 universidade e outra da psicanálise. Respondendo ao ordenamento burocráticocientífico, a uma forma correta de produzir conhecimento e, ao mesmo tempo, à formação do analista que decorre do estudo teórico, supervisão e análise pessoal. Além de ter que responder às diversas perspectivas dentro do próprio campo da psicanálise de orientação freudo-lacaniana e ao mal entendido próprio da transmissão. Há que se inventar. Para não ficar apenas no sintoma e sua queixa, há uma possibilidade que pôde ser vislumbrada, a partir da experiência: esse sujeito que sintomatiza na produção do discurso universitário se deslocar para o lugar do agente, lugar análogo ao do analisante, mas ao mesmo tempo, a posição de quem ensina. Para não ficar apenas nos matemas, tece-se a estratégia que uma dessas professoras no lugar de analisante sem saber proporcionou. Renata tinha como proposta, em uma disciplina chamada Teoria e Sistemas em Psicologia, um seminário que se transmutava facilmente em trabalho de pesquisa. Um dos grupos se enganchou nessa pesquisa, pela contingência de um sorteio de temas proposto pela professora. Explica-se: Angus não queria o tema sorteado e fez uma cara de desânimo, que logo foi tomada pela professora como algo a ser modificado ao final do seminário, pois se tratava de um importante teórico, que possuía valiosas contribuições. Logo que Angus saiu da sala, ele disse ao grupo que deviam começar imediatamente o trabalho, apesar de serem o último grupo a apresentar o seminário. O que isso teve como efeito é que o trabalho foi considerado uma verdadeira pesquisa, e que tinha ultrapassado a expectativa de Renata. O que ficou no cálculo mental de Angus é que tal teórico era importante. Renata fez uma denúncia na acepção de dizer que nem toda leitura consegue extrair 114 todas as consequências que o autor proporciona em sua obra. Tal autor parecia estar revestido de uma importância para Renata. Angus soube logo depois que essa mesma professora era psicanalista e oferecia disciplinas optativas. Apesar de seu interesse por Freud apenas se dar através de um texto chamado Luto e Melancolia, esse modo de sublinhar as primeiras acepções e preconceitos foi sublinhado por Renata. Antes Angus não considerava a leitura do texto freudiano, o que foi barrado pelo modo como essa professora operou, no seu primeiro desânimo frente a outro autor. O desejo da professora em lugar de analisante em seu ensino possibilitou esse primeiro enganchamento. Ela efetivou uma denúncia que ressoou como histérica: mais non, Menon, nem tudo, nada é tudo. Porém, para não ficar apenas nesse ponto inicial de identificação, ainda era necessária uma mudança. Tal mudança ocorreu, quando já nas disciplinas que Renata oferecia aos alunos do quarto ano (Angus estava no segundo ano), ele soube de um projeto de extensão que ela sustentava há alguns anos. Os alunos tinham a oportunidade de passar por algo análogo a uma experiência analítica, eles podiam atender em entrevistas preliminares, o que era denominado no Serviço de Psicologia como triagem. Esse ponto exigiu uma mudança, uma responsabilização, busca pela análise pessoal e outra apreensão do estudo teórico. Nesse caso, quando o professor que transmite a psicanálise põe algo de si, seu sintoma, seu estilo em uma posição discursiva histérica, possibilita que haja produção de um saber. Mas isso apenas não é suficiente, pois o aluno só passa a ouvir o que derrapa no discurso pela própria experiência de análise. É assim que ocorre o giro discursivo 115 dentro das paredes da universidade. A assunção necessária, o cair das fichas é possível em um momento ínfimo em que os alunos agenciam o discurso do analista. Em outras palavras, Renata empurrava Angus para uma posição de analista mesmo sem saber. Sem esquecer que é “ao querer sair do discurso universitário que se volta implacavelmente a entrar nele” (Lacan, 1992, p. 61). Não é pelo comando do saber, pelo governo do eu, que se sai do discurso universitário, mas por um deslocamento do sujeito e do saber em relação à verdade. Não há como dizer o que é a causa aqui, mas que a posição da professora Renata do lugar de analisante força Angus a ir para o lugar de analista. Isso não é necessário, mas contingente, foi um bom encontro, em uma boa hora. Derrapa-se facilmente da posição de analista, há uma dificuldade em se situar neste lugar. Além disso, Renata no lugar de analisante permitiu um deslocamento do sujeito que sintomatiza na produção do discurso universitário e uma consequente produção de saber. Dir-se-ia com Jéferson Pinto (2006): “o saber que ocupa o lugar de verdade para o sujeito particular é, então, uma forma de narrativa não totalizante, diríamos feminina, precária, exatamente porque sustenta o movimento do desejo” (p. 30). Saber que não é todo, mas que na experiência analítica movimenta, faz trabalhar... Traz a maior riqueza do homem, que como escreve o sutil e simples poeta Manoel de Barros, é sua incompletude. 4.3.6 – O status do mestre um dia poderá ser meu... Carlos está inscrito em uma disciplina optativa na graduação que versa sobre psicanálise de orientação lacaniana. Ao ser perguntado por seu interesse, ele passa 116 ao largo da de tal orientação, nem mesmo uma definição por uma outra orientação psicanalítica que lhe agrada. Isso não é o problema em si, mas seu total desinteresse pelo assunto e, ao mesmo tempo, a evidência de que o interesse pela matéria é a oportunidade de cursar uma disciplina que proporcione um estágio em uma instituição cujo status é bem visto. Ao contrário da histérica que denuncia que o mestre não sabe, que fura o funcionamento do mestre, Carlos só se interessa pelo estágio e como será reconhecido por isso. Sempre em busca de cartas de recomendação para outras instituições, para cursar um período de sua graduação no exterior, e para seu currículo Lattes. Não há uma demonstração de interesse pela disciplina em si, na qual sustenta uma evidente apatia. Carlos construiu muito cedo que Lacan sustenta um ensino que não se produz um saber, ilógico, incompreensível, louco, etc. Apesar da tentativa do professor assistente de sugerir outras saídas, sua ambição estava atrelada à professora responsável pela disciplina. Apenas ela poderia cingir o lugar que Carlos almejava; mais que isso, outorgar um status de aluno digno de uma recomendação para estudar no exterior. O funcionamento que a universidade proporciona, no qual o aluno apenas precisa acordar em se alocar na esteira de produção, com um mínimo de controle de qualidade, foi perfeito para as ambições de Carlos. Sua apatia na disciplina em contraponto ao entusiasmo no estágio, ou mesmo quando o mestre estava presente, proporcionava o status de aluno padrão, o que bastava para Carlos e para as exigências universitárias. 117 Por outro lado, as exigências que a formação analítica possibilita eram deixadas de lado. Até mesmo o conteúdo da disciplina não era um saber válido para Carlos (S1/$ → S2/a). Sua determinação segue a lógica da civilização, cujo funcionamento está atrelado à produção. A produção de seu objeto de ambição, objeto a ser consumido, que nunca tocará sua verdade como sujeito, que o alienará à marcha incessante de um significante a outro de suas determinações inconscientes, em um saber que não se sabe. 4.3.7 – A foca que persegue o cisne negro. Odília está prestes a formular seu anteprojeto de mestrado com a finalidade de participar da seleção para a pós-graduação. Para tanto, pede ajuda a dois amigos que já estão cursando a pós-graduação e, portanto, já haviam passado pela seleção. Arrebatada pela mística que pode ser concernida à psicanálise, Odília sentese atravessada por diversos saberes que ela identifica como dizendo respeito a si mesma; sejam alguns escritos de Lacan ou sintagmas pronunciados por professores, que se afiliam ao pensamento deste autor. Fascinada por sua própria interpretação da teoria, busca qualquer assunto que a interessa intimamente, o que dificulta sua tarefa em focar em uma única questão para o mestrado. Focar, obviamente, é castrar suas pretensões e seu eterno fruir por suas diversas identificações, as quais a sustentam em seu não querer saber de nada disso. Que apesar de não paralisá-la poderia impedi-la de entrar na pós-graduação. Depois de muita insistência, os amigos junto a ela conseguiram encontrar uma questão que poderia ser uma questão de trabalho. Apesar de não se satisfazer 118 com a questão, sua confiança nos amigos foi suficiente para dar um ponto de basta em sua eterna fruição. Ao entrar na pós-graduação, sua insatisfação transbordou as comportas que represavam sua fruição. Odília poderia se identificar com alguém como Odete e repetir o movimento da mimética Isis, que imita o objeto de fascínio. Odete também se apaixonou pela psicanálise, mas ao contrário de Odília, ela era correspondida. Sua paixão não seguia uma fruição, seu represamento era a finalidade de sua formação. Porém, Odília não era tão submissa a uma identificação tal qual Isis, o que a protegia da alienação. O que não foi suficiente para protegê-la de sua paixão pelos saberes que a concerniam, os quais faziam parte de sua mística fruição. Quando Odete exige que Odília foque em uma questão, sua resposta é que um animal a persegue em seus pesadelos: uma foca. A terrível castração necessária para sua inserção na academia se transmuta imaginariamente em um animal. A primeira exigência que a universidade promulga em um trabalho acadêmico é a formulação de uma questão de pesquisa. Entretanto, para a formação em psicanálise essa questão de pesquisa não é necessariamente formulada. A pesquisa essencial é a da própria análise, na qual a questão essencial está excluída. Talvez, Odília pensasse que poderia fazer o mesmo na academia, mas tampouco na psicanálise suas questões poderiam estar soltas da forma que estavam, por se tratar de um discurso que busca certa seriedade como defende Lacan (2008). 4.3.8 – A aluna com um pé dentro e outro fora da psicanálise. 119 Maria é uma aluna exemplar para a academia, já possui artigos publicados, iniciou o mestrado cedo e participava ativamente dos grupos de pesquisa. Por outro lado, sua orientadora enxerga Maria como uma aluna com um pé dentro e outro fora da psicanálise. A princípio é uma posição atinada frente a um novo saber; manter-se na desconfiança de que aquele saber não se fundamenta, que ele não possui um funcionamento próprio, etc. Talvez, no início Maria permaneceu sabiamente nesse lugar, mas tenha se perdido. A desconfiança não foi tão forte, mas tampouco sua decisão por se aprofundar em psicanálise. Ela se limita a ficar na superfície, mais do que isso, constrói textos coesos, porém tais textos não são coerentes com a pesquisa em psicanálise. Suas descrições textuais são como a utilização de uma ferramenta para leitura do mundo, utiliza talvez a psicanálise no lugar da ciência, como uma Weltanschauung. Porém, não adquire esse saber como próprio. Para a universidade seu percurso não sofreu prejuízo, mas sua formação analítica pode estar totalmente estagnada. Maria poderia ter outra saída para sua formação analítica dentro da universidade. Ela poderia manter uma relação de extimidade com a psicanálise. Mesmo de fora, seu pensamento poderia questionar o interior da teoria psicanalítica, não se alienando tanto quanto a mimética Isis. 4.3.9 – O texto lacaniano em um de seus outros usos possíveis: texto bíblico. Fábio faz uma leitura bíblica dos textos lacanianos, procura a verdade em cada linha escrita. O entendimento de todo o texto depende intrinsecamente da 120 compreensão das partes de cada trecho do texto. Ele vai mais além, propõe que o texto se esgote nele próprio. Tarefa impossível, principalmente, devido às inúmeras referências contidas no texto lacaniano. Tais referências na maioria das vezes totalmente obscuras a uma primeira leitura e até mesmo referências que o próprio Lacan em sua fala ou texto necessariamente desconhecia. A cada frase, Fábio se perde por tentar compreender a frase como tal. Quando alguém menciona uma referência para além do texto, seja de outros autores, do próprio Lacan ou da experiência clínica, ele se fecha ao que está sendo pronunciado, pois não tem valor para o projeto impossível que constituiu. Claramente, ele se aborrece quando sua indústria não funciona do modo como ele elaborou. A paralização do funcionamento impossível é algo impensável, mas quando “confrontado” com a real impossibilidade de sua tarefa, ele permite um movimento em seu discurso. Não mais demanda que suas vontades como senhor sejam aceitas, mas que ele próprio seja aceito com suas dificuldades. Não se deve mais à impotência dos outros ou dele próprio a não realização de seu projeto. Abertura necessária para que ele se re-situe em relação ao laço social, que estava desgastado por sua imposição de senhor. Por outro lado, os outros, que apesar de funcionarem como o saber necessário para que Fábio obtivesse seus bens (seu bem supremo), não correspondiam a sua demanda devido ao movimento anterior de cada um no grupo. Eles já tinham decidido por uma leitura despretensiosa do texto lacaniano, na qual a compreensão surge só-depois e o texto serve como ponto de basta para incompreensões anteriores. A leitura muito mais encerra uma leitura anterior do que 121 esclarece a própria frase; seja de textos, práticas, experiências ou seminários anteriores. É a assunção de que diversas fichas caem naquele exato momento. Por acaso, Fábio encontrou outros que não se colocavam como saber e muito menos como objetos para sua satisfação funcional de mestre. O problema foi ao extremo quando Fábio encontrou outro mestre, o qual possuía um projeto em que o funcionamento casava com as expectativas de cada um que participava do grupo de estudos. Nesses instantes, suas palavras tornavam-se acusação de que o malfeitor não era o único a “possuir” o saber. Acusação que o colocava cada vez mais como astudado, que se compara aos trabalhadores, escravos, etc, mas que na verdade assumem um lugar de gozo, que os mantêm no lugar em que eles almejam se libertar. Se outro mestre conseguia se sacar dessa posição, o mal-estar se dissipava. Mas devido a tantos desencontros, muitas vezes ambos discursos mantinham-se cristalizados. Devido à limitação de se criar uma imagem a própria semelhança, talvez os encontros permanecessem cansativos para todos. O que será que mantém um laço social? Não seria o mínimo de imagem que ao mesmo tempo limita e permite que se viva nesta civilização? Apesar de algumas vezes Fábio se deslocar de sua crença de que é pelo ordenamento (possessão) do saber que se consegue chegar a um ponto ideal na teoria psicanalítica, a consistência imaginária que o projeto tomara não possibilitou uma “verdadeira” virada de mesa em suas elucubrações. O grupo prosseguiu em seus encontros, mas a assiduidade de Fábio diminuiu bastante. Ele sintomatizava cada vez mais, o que determinou a impossibilidade de uma continuidade de trabalho. 122 4.3.10 – Anna: a expertise de um único assunto. Em seu estágio de docência, Anna sofre a exigência de tratar de diversos assuntos na teoria lacaniana, aos quais desconhece em seu âmago. Sua posição ao invés de ser a de pesquisar e estudar tais assuntos minimamente é sustentar uma posição de quem sabe sobre tal matéria; outorgando um lugar em que ela sabe, mas que apenas produz um sujeito sintomático. O sintoma de Anna é sua expertise sobre o Estádio do Espelho, máquina metafórica de fazer pensar, mas que a aprisiona. Todo assunto desemboca no Estádio do Espelho e ela “consegue” explicar toda a teoria lacaniana por esse ponto na teoria. Não que isso seja impossível, pode ser considerado até mesmo salutar para sua formação. A questão é a proposta de explicar algo que ela ainda não vislumbra, do lugar mesmo de quem sabe. Esse é seu semblante perante todos os outros, que ao ser colocado em xeque faz sintoma. Muitos ficam absortos pelo lugar de saber na universidade e caem na armadilha de que um dia serão autores, se acaso fizerem tal e qual Anna. Já se viu, nesta tese, que o mimetismo não leva para um bom lugar. Anna quando fez a prova de seleção para o doutorado, não passou. O que desvendou mais um pouco o seu semblante de saber. Por sua vez, aqueles que acreditavam em seu modelo tornaram-se desconfiados, após o episódio da reprovação. A resposta de Anna não foi de aceitar isso como algo que precisasse mudar, mas um ataque à forma e conteúdo da avaliação. Permanecer cristalizada nesse discurso de saber permite a Anna retornar a academia e dessa vez passar no doutorado, mas seu sintoma permanece e sua formação continua em xeque por sua 123 busca desenfreada pela permissão de conduzir (carteira de motorista), como diria Lacan (1992). 4.3.11 – A bailarina assopra o edifício de cartas do mestre. Ella estava em seu segundo semestre do curso de psicologia, quando se interessou pela psicanálise. Seu interesse pela literatura como forma de tratamento do mal-estar fez a pouca leitura que possuía de Freud bastar para dar passos adiante na formação. Resolveu participar de uma base de pesquisa e tentar se situar quanto suas questões entre a literatura e a psicanálise. Quando convidada a participar de um cartel sobre a leitura de um seminário de Lacan, respondeu com prontidão afirmativamente, mesmo ainda não entendendo o funcionamento deste grupo. Era uma oportunidade de dar vazão às suas questões, mas, principalmente, de trabalhar em grupo sua questão de pesquisa sobre a literatura como forma de tratamento ao mal-estar. Sempre sagaz em sua posição, ela possuía uma facilidade/afinidade com o discurso psicanalítico, com seu discurso histérico se desenha o discurso do analista, diria Lacan (1992). Pode-se desenhar uma imagem clara da sua posição, além de situar seu discurso como o discurso da histérica. Ella é a bailarina que nas pontas dos pés delicadamente sopra o edifício teórico feito de cartas do seu pretenso mestre. Ella faz desmoronar qualquer funcionamento que o mestre engendra, pois aponta com as próprias palavras do mestre seus furos. Ella diz que nem tudo funciona conforme a marcha incessante da rede significante, há algo que a torna preciosa e que é sua verdade, que resta como não 124 significantizável. Ella faz isso sem saber, mas quando por um momento consegue re-situar o mestre de sua posição como senhor, há uma passagem do discurso do mestre para o discurso da histérica, o que necessariamente é a insurgência do discurso do analista segundo Lacan (1992): o deslocamento (...) é a própria condição do discurso analítico (p. 138). Angus tentava explicar para Ella algo da leitura do texto, como se soubesse o que estava fazendo, em um funcionamento automático esquecia suas próprias palavras. No momento mesmo que Ella sublinha as palavras anteriores de Angus, que contradizia o que ele tentava fazer funcionar, Angus reconheceu-se como rei que estava nu e não sabia. Ella suavemente diz que o rei está nu, quando todos olhavam para as palavras do rei como se ele estivesse com a mais preciosa e bela veste em seu funcionamento. Ella permite a explicitação in loco da passagem pelo discurso do analista. O mais interessante é que o cartel tratava da leitura do seminário sobre os quatro discursos. Essa passagem abriu um vórtice pelo qual as ideias anteriores escorreram, um nunca tinha pensado assim antes... Uma nova posição se estabeleceu para Angus, que pensava está certo em sobre o que pronunciava e construía para que tudo continuasse como sempre. Ele entrou nesse turbilhão e não sabia mais onde parar para restituir seu lugar. Abdica desse lugar para construir um novo saber sobre o que antes era dado como certo. Produz-se a assunção. 4.4 – Breves conclusões sobre os fragmentos. As discussões sobre cada um desses alunos permitiram a indicação de que pelo discurso da histérica é possível habitar a universidade sem se paralisar ou 125 entrar em uma busca incessante em relação ao saber. Mas habitar sempre nesse mesmo discurso também é atroz, não permite o movimento que é necessário em relação ao não querer saber. O trabalho da bailarina que assopra o edifício feito de cartas do mestre e, sem saber, provoca a circulação do discurso, que só é permitido, pois ali havia alguém que escutou da boca da histérica esse saber que é excluído da ciência. Este que escutou é alguém que suponha um sujeito do inconsciente, alguém que estava na posição de analista. De alguma forma, o inconsciente só existe, porque há alguém que o escuta, só há movimento do discurso se há a passagem pelo discurso do analista. Como se ensina alguém a habitar esse lugar? Pela análise é a resposta principal, mas há as ferramentas e artifícios que Lacan se utiliza para que haja analistas, para que eles possam se aperceber dessa posição na civilização. Sem análise, estudo teórico e supervisão, não há como aguentar a permanência no discurso do analista. O sopro da bailarina não seria suficiente para desmontar o funcionamento do mestre, a cola do seu imaginário estancaria seu esvaecimento. O enfrentamento com o ensino lacaniano permite que não se fique almejando uma permissão de conduzir uma análise, mas situar se é possível que haja um analista com seu desejo. A responsabilidade de enfrentar todos os dias o mal-estar na civilização. A universidade parece mais servir como ponto pelo qual o bonde da psicanálise passa e cada um, como pode, entra nele ou não, sem saber ao certo quanto tempo durará a viagem e qual o seu destino. 126 127 CONSIDERAÇÕES FINAIS 128 A monografia é uma herança cartesiana, da qual Freud se utiliza para escrever seus textos em primeira pessoa. Freud é um romancista, escreve seus casos como verdadeiros romances, o que lhe rendeu o prêmio Goethe de literatura. É o próprio Freud que está no centro de todas as suas construções teórico-clínicas. Isso possibilita a vários autores psicanalíticos se laçarem na mesma empreitada. Mas, na maioria das vezes, há uma fruição que não cessa por diversos questionamentos que a vida promulga. Freud também se perdia em idas e vindas na construção da práxis analítica. O que permite não recriminar tais autores por suas incursões em uma escritura subjetivada. Não há como se livrar dessa submissão que o próprio campo remete, pois o objeto próprio da psicanálise é o sujeito. Lacan oferece alternativas para que se alcance certo desvio em relação a isso. Sua tentativa é constituir uma matemática, que permita tratar logicamente a questão do sujeito, mas não sem a poesia. Ao ler cada texto de autores psicanalíticos, fica mais do que evidenciado a posição subjetiva de cada um deles em relação ao assunto de que se trata. Alguns são mais poetas outros mais matemáticos, mas não há como fugir da submissão ao inconsciente. Entre a lógica da matemática e a ficção da poesia está tese foi formulada, mas seu campo de força ainda tende mais para poesia. Trabalho que o autor precisará enfrentar em trabalhos futuros, no qual precisará fomentar uma aproximação à matemática. Devido a essa problemática, não há como não situar todo o percurso em uma fieira Édipo-Descartes-Freud-Lacan. Sendo que o último conseguiu avançar em 129 direção a uma seriedade estrutural para que a formação do analista não se perdesse em uma eterna identificação ao pai Freud ou ao mestre Lacan. Portanto, a leitura do texto precisa ser repetidamente ponderada com os matemas e a topologia que Lacan construiu. Como se ao ler o texto da tese, os alunos precisassem a todo o momento apreender os esquemas, escrever os discursos e brincar com os objetos topológicos. Primeira recomendação aqui recuperada é a destreza que esses utensílios provocam e sua importância à formação do analista. Há outro trabalho que se remete aos leitores, que ao se confrontar com a leitura possam considerar os achados como recomendações. Essa sugestão é propositalmente colocada no final da tese, para que os leitores não se arrisquem em buscar as recomendações, ou seja, não busquem a verdade pelo saber. Nesse ponto, retoma-se Freud (1999-1912) quando sustenta, em suas Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, que tais preceitos foram alcançados por sua própria experiência. Frutos de um único preceito herdado de Ambroise Paré: “Je le pansai, Dieu le guérit” (Fiz-lhe os curativos, Deus o curou). Freud defende que o modo como ele age na clínica é apropriado a sua própria subjetividade e que cada um pode agir ao seu modo. Da mesma forma, os alunos que aqui se depararem com um achado como recomendação precisam fazer a crítica assídua, pensar se o preceito achado é conforme a sua própria individualidade. Essa é uma possibilidade de questionamento ético da teoria e prática analítica que necessita ser repetida a todo o momento para que os sentidos não imperem e a compreensão faça a ligação de tudo com tudo, como propõe a religião. 130 Freud estava interessado, tal qual as histéricas, em um domínio ainda não deflorado, um saber em reserva. O que produziu nos seus seguidores o desejo de saber sobre as proposições que ele próprio deixava como lacunas. É nesse campo que se insere Lacan. Ele saca que a psicanálise é o sintoma freudiano e se confronta com a possibilidade de dar consequências sérias as formulações dispersas de Freud. Atinge uma redução lógica para que o saber psicanalítico possa operar. Nesse procedimento, Lacan realiza o questionamento da rotina estabelecida dos psicanalistas através de uma organização circular de sua escola e, após sua dissolução, de seu campo freudiano. Para tanto, propõe a formulação do cartel, que antecipa a lógica de permutação discursiva que ele sustenta a partir da década de setenta. Com Lacan, abre-se a possibilidade de se defender que a psicanálise não é uma experiência inefável. Suas ferramentas proporcionam um exercício contínuo para que a psicanálise permaneça operando no mundo. O aluno precisa apreender o funcionamento dos matemas e dá consequências para que a experiência analítica possa existir. A formulação dos discursos permite, nesta tese, pensar que o discurso histérico é a possibilidade de um saber se produzir na universidade. Nas palavras de Lacan (2003f): “um saber como produção do próprio significante-mestre, em posição de ser interrogado pelo sujeito elevado a agente” (p. 307). Posição discursiva que produz efetivamente um saber, radicalizando, assim, a subjetivação. Por outro lado, permanecer cristalizado nesse discurso pode produzir uma denúncia infindável do status quo que não se fixará como um saber de mestre, não 131 funcionará como uma lei que mantém a ordem do mundo. Manter-se sempre no lugar da exceção pode fazer com que o laço social seja desagradável aos outros e a si mesmo. Proporcionando ao aluno mais mal-estar do que a produção de saber pode sustentar. De acordo com Lacan (2003f) alguém apenas pode ser ensinado à medida de seu saber. As recomendações aqui propostas estão inseridas incidentalmente com o propósito de que o enigma possibilite a não obturação da verdade. Que as recomendações permaneçam semi-ditas e que o saber não tome o lugar do agente do discurso, o lugar de comando. Quando os iniciantes a classe dos interessados em psicanálise veem em busca de saber a verdade de tal disciplina, sua ânsia tende a tomar a via de uma identificação. Mas algumas vezes eles são mais propensos a se deixarem tocar pela novidade da psicanálise. O autor da tese se coloca como neófito a essa disciplina e sabe que suas expectativas não são quaisquer. O encontro com o ensino lacaniano exige um contínuo exercício lógico para que a psicanálise não deixe de existir, mais especificamente, para que existam analistas. Desse modo, conclui-se que as recomendações para que cada aluno permaneça não-todo na universidade carecem de que ele se responsabilize pela escolhas a que está submetido. A ficção romanceada pode ser o primeiro passo em direção à formação. No caso específico, foi esse o caminho que se ofereceu ao autor da tese. Mas não se pode esquecer que a lógica matemática é necessária a permanência do psicanalista no mundo. 132 As escolhas já estavam feitas desde sempre, reconhecê-las e fazê-las próprias é a proposta que a psicanálise permite formular. Nas palavras de Goethe: “Aquilo que herdastes dos teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”. 133 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alberti, S. (2000). Apresentação. In: Luciano Elia & Sonia Alberti. (Org.). Clínica e Pesquisa em Psicanálise. (pp. 19-35). Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. André, S. (1987). O que quer uma mulher?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Azevedo, A. V. (2001). A partir da “terceira margem do rio”: algumas considerações sobre transmissão em psicanálise. Ágora, 12(1), 61-72. Bernardes, A. C. (2003). Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise. Rio de Janeiro: Garamond. Castro, J. E. (2006a). 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